‘Negro precisa ser sério para parecer competente’, diz dentista

A afirmação é de um dentista negro. André Tartarini é também escritor e está lançando seu quarto romance, “Apetites carnais desordenados” (Independente). Ele sonha com o dia em que negros e brancos tenham o mesmo direito de sorrir quando quiserem. Eis o seu texto para o Quadro-negro.

 

Cuidado

Por Andre Tartarini

Ontem sonhei com minha mãe. Ela perguntava por que não a deixavam voltar para casa. Fui direto: Mãe, você morreu. Eu ia dizer que o neto que ela não chegou a conhecer é um moleque lindo. Um preto lindo.

Minha mãe morreu em 2011. Coube a mim identificar o corpo, olhos fechados, boca semiaberta: um retrato cruel colado no álbum das minhas lembranças. Minha mãe era preta. Parda na certidão de nascimento. Brincalhona. Criada no subúrbio carioca. Suas irmãs se formaram professoras. Ela optou por uma improvável carreira: a odontologia.

Uma vez, o professor a chamou de filhote de cruz credo. Contrariando o que se esperaria de uma suburbana tímida, minha mãe foi à diretoria exigir que o sujeito lhe pedisse desculpas em público.

Ela encarou muita coisa para que pudesse me colocar numa das melhores escolas da cidade, onde vi pessoas de meios diferentes dos meios onde ela tinha vivido. Nada tirou sua capacidade de ser leve, porém firme; engraçada, porém leoa.

A odontologia foi o meu caminho também. Trabalhávamos juntos, e a morte dela foi uma contusão que só começou a sarar quando entendi que um pedaço meu não morreu com ela: a ferida que se abriu após sua morte é hoje um pedaço dela que vive em mim.

A irreverência sempre esteve comigo como algo genético, herdado mais pelo sangue do que pelo convívio. E não se trata só de ser engraçado. Rir lá em casa sempre foi terapêutico, xamânico. Gargalhar é remédio, antídoto, cura.

Na faculdade, a irreverência me fez ser popular. Eu repetia o modus operandi de outros colegas negros de outras turmas. Na instituição, toda turma tinha um “Didi” – designação, provavelmente vinda do personagem que Renato Aragão fazia na TV, que servia para identificar o aluno mais palhaço da turma.  Recebi a condecoração “O Didi da turma” do eleito no ano anterior, também negro. Passei o bastão para o eleito no ano seguinte, também negro. Éramos raros. Geralmente um negro por turma.

Os “Didis” eram parecidos. Éramos engraçados, piadistas. Eu era um dos que mais claramente repetia esse padrão. Não tardou para que se percebesse que o bom humor podia ser considerado falta de seriedade. O padrão que eu repetia sem perceber, por me garantir sorrisos e um lugar na roda da cerveja, me garantia um posto falsamente confortável. De onde foi difícil sair.

Sou dentista formado. Olhando para trás, é nítido: meu papel no grupo era fazer graça. Quase um bufão. Não só na faculdade. Eu era o engraçadinho de todos os grupos de que fazia parte –grupos majoritariamente brancos. E se eventualmente eu estivesse pouco disposto a fazer as gracinhas de costume, às vezes chegava a ser repreendido. Uma vez, num casamento, a noiva reclamou que “não tinha me convidado para eu ficar chato daquele jeito no salão”.

Eu era aceito desde que fosse engraçado. Sendo engraçado, poderia frequentar os mesmos ambientes que eles. Mas só até o salão social. Não me era permitido cruzar certo limite. Minha mãe tentara me alertar de várias maneiras.

Um profissional de saúde negro precisa provar que seu bom humor não é sinal de incompetência. É preciso estar atento. Demorou até eu entender que, sendo negro e do subúrbio, às vezes é preciso fechar a cara para se mostrar competente.

Agora meus pacientes me conhecem suficientemente para que eu possa usar o humor como terapia. Não foi simples, nunca é, fazer valer esses valores no ambiente acadêmico, nas consultas, no convívio diário. A guarda nunca deve estar muito baixa. Resta o consolo de que depois de um tempo a gente se acostuma a dormir com um olho aberto.

A imagem da minha mãe no leito de morte não se apagou da memória, nem vai desaparecer. Mas é quando tiro a dor de alguém ou não engulo os desaforos nossos de cada dia, mantendo-me firme sem perder a graça, é nessas horas que a reconheço em mim.

No sonho que tive, ela não aceitava que tivesse morrido. Mas ouvir que eu e meu irmão estávamos bem a deixou mais tranquila. Antes de desaparecer no breu daquele sonho breve, se despediu com uma palavra só: Cuidado.