Depois do óleo, preconceito: Navio estrangeiro vaza intolerância na Bahia
Ancorou em Salvador, no último dia 25 de outubro, um navio estrangeiro cristão missionário. Veio em missão de catequese. Um navio-livraria, aberto ao público, com obras sobre como ser uma pessoa exemplar, na visão dos missionários, claro.
Em uma rede social, a organização OM Ships International, responsável pela embarcação, pediu para que seus simpatizantes pelo mundo orassem por proteção durante a estadia dos tripulantes, pois a Bahia seria conhecida por um lugar onde se crê em demônios.
Aqui a postagem na íntegra:
“Rezem por um embarque seguro e por uma navegação de dois dias direto para Salvador. Rezem por proteção, força e sabedoria para os tripulantes durante a estadia em Salvador – uma cidade conhecida pela crença das pessoas em espíritos e demônios. Rezem para a equipe de eventos, que se prepara para um novo porto, e que Deus possa ser glorificado ao longo de cada um dos eventos que virão.”
Veio a revolta dos devotos das religiões afro-brasileiras. Neste momento estão se organizando para uma manifestação contra a intolerância religiosa, na próxima segunda-feira, dia 4, em frente ao Logos Hope, nome do navio estrangeiro ancorado.
A OM Ships International apagou a publicação e veio à público desculpar-se pela postagem. Disse que um funcionário desautorizado a fez e que a opinião ali era pessoal dele. Que a empresa é a favor da liberdade de expressão religiosa etc.
“Opinião pessoal de um funcionário”. Quantas pessoas e quantos funcionários não sabemos pensarem igual? No mundo, quantos estrangeiros não têm visão preconceituosa de nativos?
Todas as culturas do planeta registram demônios em sua mitologia. São entidades geralmente abstratas. Afinal, como dar forma de forma justa a conceitos fluidos como bem e mal? A cultura cristã deu. Na Idade Média, em seus concílios, espécie de reuniões de briefing onde bispos faziam as vezes de diretores de arte e redatores de publicidade, criou-se o produto Diabo. Deu-se a ele forma dos deuses pagãos que, cultuados pelos europeus nativos, eram obstáculo para o projeto de poder que o cristianismo apostólico romano colocava em prática.
Quem trouxe o Diabo ao Brasil foram os estrangeiros. Demonizar os deuses das culturas que se quer dominar economicamente é tão violento quanto genial. Tão eficaz quanto… diabólico.
E assim, de navios estrangeiros em navios estrangeiros desde Cabral, passando por petroleiros que vazam petróleo e navios missionários que vazam preconceito, somos transformados em força de trabalho barata e mercado consumidor para manter os privilégios dos colonizadores.
A manifestação contra a intolerância religiosa da embarcação em Salvador que ocorrerá na próxima segunda-feira, dia 4, é muito mais do que sobre religião. É sobre genocídio e exploração do homem pelo homem. Os organizadores pretendem fazer um ebó no porto onde o Logos Hope está ancorado.
E se você, leitor, sabe de cor a tradução das palavras “logos” e “hope”, mas não sabe o que é ebó, é sinal de que o projeto colonial (do qual toda essa história do navio missionário em Salvador é apenas uma fração visível) chegou até os lugares mais inesperados.
Chegou até você.
Um vazamento tão desastroso quanto o petróleo cru em nosso litoral. E de talvez ainda mais difícil resolução.
Mas, como tudo o de ruim que navios colonizadores nos trouxeram, uma questão de limpeza.
É o que o ebó significa. Limpeza espiritual.
Tudo o que este país precisa.