A Flip tornou-se menor que a Flup

O que determina, em qualquer lugar do mundo, a grandeza de uma festa literária? A quantidade de visitantes? De editoras? A qualidade de escritores convidados? Em 2007, conversando com o cultuado e recluso escritor americano Jim Dodge em Paraty, durante a Flip da qual participou, ele, um tanto ultrajado, olhando ao redor, perguntou:

– A sensação é que viajei no tempo e estou no Brasil colônia. A arquitetura desta cidade, a presença exclusiva de pessoas brancas e ricas sendo servidas por comerciantes negros e pobres, a ausência de escritores negros brasileiros é revoltante.

Eram outros tempos. A Flip nunca foi, hoje vemos, uma festa da Literatura Brasileira. E sim, uma festa da Literatura de Elite Brasileira.

Até 2018, quando a baiana Josélia Aguiar assumiu sua curadoria, pareou a Paraty com o Brasil, a colônia com colonizados. Convidou o preto e o periférico para sentarem-se à mesa. Foi o ano em que Dona Diva Guimarães, professora negra de Santa Catarina, pediu a palavra para Lázaro Ramos durante uma das palestras e tornou-se História.

Porém, manda quem detém os meios de produção. Já na Flip passada, sem Josélia, Euclides da Cunha, racista em tempos racistas, foi o homenageado, à guisa de “vamos refletir e revisar”, algo que, na prática, se restringe apenas à bolha espaço tempo do evento. Djamila Ribeiro foi a escritora que mais vendeu livros na festa. A cabeça do público já estava em transformação.

Enquanto isso, a Flup, Festa Literária das Periferias, nascia e crescia. Forte, relevante, popular, densa, multicor, multiclasse. E, este ano, com Djamila e a programação paralela à festa oficial,  salvou o evento, tornando-se inclusive parceira da irmã rica de Paraty.

Este ano, a Flip sinalizou querer continuar a ser Flip: anunciou a americana Elizabeth Bishop como homenageada do ano que vem. Houve muita chiadeira. Estamos em um país onde a bolha intelectual está, como já dito, em transformação. E ela berrou, contrariada. Mas falta o berro, a opinião de um escritor negro de periferia. Por uma questão de equivalência. Só para que todos possam falar.

Cria do Complexo do Alemão, Igor Verde é escritor, roterista da Globo e professor das oficinas literárias que a Flup oferece para jovens de periferia, algo que curiosamente a Flip nunca se propôs a fazer (e seu público curiosamente nunca se pôs a cobrar).

O fato é que, apequenada, a Flip tornou-se menor que a Flup. Ou terá sido a Flup que, ao fazer o mínimo, agigantou-se?

Estas são as ideias propostas por ele.

Qual Brasil a Flip Projeta? – Por Igor Verde

Elizabeth Bishop foi escolhida como autora homenageada na FLIP 2020, homenagens falam sobre o presente, não sobre o passado.

Elizabeth Bishop era americana, se apaixonou por uma brasileira e passou quinze anos da sua vida por essas terras.

Fez amizade com Carlos Lacerda, então governador do Rio, e se disse aliviada quando os militares desceram o cacete no povo que foi às ruas pedindo democracia.

Mas a homenagem não é sobre isso, essa pessoa descrita nas linhas acima já não existe, o que restou dela são os signos perpetuados por seus poemas, suas cartas, e pelas histórias que contam sobre ela.

Como em toda homenagem, são esses signos que estão no cerne da maior celebração literária nacional em 2020.

A maioria de nós morrerá e logo esses signos se irão junto. Por um par de anos algum ente querido se lembrará de uma ou outra história engraçada, alguém lerá um e-mail que enviamos, verá uma foto ou um vídeo em que estará nossa imagem mas, na maioria dos casos, nossa memória morrerá antes que nossos ossos virem pó.

Alguns poucos perpetuam seus signos no tempo e no espaço. Os evangelistas estão aí, vendendo livro até hoje. Maçãs ainda caem na cabeça de Isaac Newton.

E isso acontece porque nós, vivos, escolhemos quais signos do passado servirão de base para nos ajudar a organizar o nosso presente e, consequentemente, nos lançar ao futuro.

Pensemos na primeira edição da FLIP em 2003. Gilberto GIl era ministro da cultura. Lula presidente, ninguém ouvia falar de AI-5 e a ditadura parecia algo prestes a ser esquecido. O homenageado daquela que já nascia como a maior feira literária do país era Vinícius de Moraes.

O poetinha boêmio, fora afastado do Itamaraty na época da ditadura acusado de alcoolismo. Em 2010 Lula restitui a Vinícius o título de embaixador. Minha mãe comprava sua primeira televisão colorida e o maior foco do governo era um programa para erradicar a fome.

Uma reflexão rápida: Se Bishop e Vinícius se encontrassem nas últimas eleições o rolê seria tenso.

Ao escolhermos homenageados para a principal feira literária do país temos de ter consciência de quais símbolos queremos como base para a nossa construção social.

A FLIP quer perpetuar como signo, no momento presente brasileiro, uma americana que apoiou a ditadura, fez análises bem rasteiras sobre o Brasil e escreveu um poema da janela do seu apartamento no Leme: “On the fair green hills of Rio / There grows a fearful stain / The poor who come to Rio”.

A curadoria da FLIP termina por perpetuar a voz daqueles que já estão no poder.

Os símbolos que se ligam a Bolsonaro, Paulo Guedes, um desses deputados do PSL que gosta de quebrar placas.

Eu quero a alvorada do Cartola. A voz, a lágrima e o fogo de Conceição Evaristo. A Lua que Menstrua de Elisa Lucinda.

A Vida Preta de Carolina Maria de Jesus.

Eu quero que o morro seja lido como a alvorada de Cartola.

Era isso que eu homenageava na minha laje, no Complexo do Alemão.

Signos que mapeiam todos os dias um Brasil que pode sim ser plural, festivo, inclusivo e afetivo.

As homenagens que você rende define o mundo no qual você viverá. Você já escolheu o seu?

 

 

 

 

Igor Verde é escritor e roteirista da TV Globo.