Bezerra da Silva foi Rennan Da Penha.  Foi o cristo negro da Mangueira que os cristãos conservadores querem censurar. Portanto, Bezerra da Silva continua sendo. Exemplo de que são em contínuo as estruturas que sustentam a sociedade brasileira. Malandra mesmo é nossa elite, que racializou nossos afetos e fluxos econômicos. Esta sim, é a malandragem que nunca dá um tempo. O jornalista Evandro da Conceição é um estudioso da vida e obra de Bezerra e defenderá para seu mestrado em Comunicação na UFRJ a tese “Por que esta erva é proibida? Legalização e descriminalização do uso da maconha no samba de Bezerra da Silva, Planet Hemp e no rap de Marcelo D2”. Para o quadro-negro, ele escreve sobre o que significa Bezerra da Silva, hoje.

Bezerra da Silva vive – Por Evandro da Conceição.

         No dia 17 de janeiro fez-se quinze anos de morte de Bezerra Silva (1927-2005), um dos maiores símbolos do que convencionou-se chamar de  malandragem carioca.  Discriminado, chamado por parte da crítica musical de sambandido, acusado de defender a bandidagem e fazer apologia ao crime, o sambista foi incompreendido na sua genialidade por uma elite intelectual indiferente à cultura popular que emerge das periferias. 

Ousado, Bezerra colocou o dedo na ferida e escancarou em seu repertório as mazelas e desigualdades sociais daqueles que vivem à margem, confinado nos morros, guetos e favelas.  Também denunciou a repressão  e violência policial contra o favelado, o racismo estrutural, além de endereçar críticas ácidas aos charlatões da fé alheia e à desprestigiada classe política brasileira.

       Pernambucano de origem, carioca por adoção, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1950 em busca de melhores condições de vida e até chegar à consagração como artista, experimentou muitos percalços. 

        Embora antes de falecer tenha se convertido à Igreja Universal do Reino de Deus, anos antes Bezerra da Silva, filho de Ogum com Iemanjá, encontrou na Umbanda o alento que necessitava enfrentar os perrengues da vida cotidiana.  O sambista morou por mais de 20 anos no Morro de Cantagalo e se tornou uma espécie de embaixador desta e de outras favelas identificadas com o seu repertório.   

      Também escreveu um novo estatuto da malandragem e no decorrer de sua carreira fez questão de ser distanciar da representação clássica da vadiagem do malandro de tempos de outrora.  Para o sambista, malandro era aquele que trabalha e sobreviver num mundo desigual operado pelo Estado opressor e à exploração do sistema capitalista é o que faz do homem um autêntico malandro.

         Mesmo creditando suas conquistas e prestígio ao trabalho, o intérprete enfrentava a desconfiança da polícia e foi preso dezenas de vezes para averiguação, apesar da ficha limpa e nada a dever a lei dos homens, conforme cantava em “Se não fosse o samba”.   Em relação às parcerias musicais, Bezerra da Silva inaugurou um filão que se tornou uma marca na sua vitoriosa trajetória artística: preferiu compositores desconhecidos e pobres, alguns deles trabalhadores braçais, camelôs e desempregados, oriundos de favelas cariocas e da Baixada Fluminense no lugar de nomes consagrados pelo público e crítica.   

     Além de potencializar vozes marginalizadas por meio dos sambas, a obra do cantor construiu de forma autônoma e espontânea um documento verbal sobre os morros e favelas que encontraram nele um canal potente no qual podiam se expressar. 

     Aos que se escandalizaram com o especial de Natal do Porta dos Fundos e com o enredo que retrata um Jesus Cristo negro e favelado que Leandro Vieira – premiado carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira – pretende levar para a Sapucaí no domingo de carnaval, um spoiler: Bezerra da Silva era chegado numa polêmica.  

Na capa do disco “Eu não sou Santo”, lançado em 1990, o sambista aparece preso na cruz com os pés descalços, armas na cintura e nas mãos.  A ideia do fotógrafo Wilton Montenegro foi comprada de imediato pelo artista. A imagem foi inspirada na história real de um ladrão que tinha sido crucificado num morro carioca e Bezerra estava mostrando os novos crucificados na sociedade contemporânea. 

    Importa ressaltar que as narrativas inseridas nos sambas cantados por Bezerra da Silva em determinados aspectos se confundem com a vida e experiências do próprio intérprete.  Apesar de se autodeclarar porta-voz das favelas e propagar para além do território a realidade nua e crua dos morros e favelas por meio do samba, Bezerra da Silva fala de si conforme canta em “O preço da glória”: Eu sou aquele que chegou do nordeste pra tentar / na cidade grande minha vida melhorar / Graças a Deus consegui o que eu queria/ Hoje estou realizado terminou essa agonia.

   Parafraseando Nelson Cavaquinho, Bezerra da Silva recebeu as flores em vida. Foi personagem junto com os seus principais compositores de “Onde a Coruja Dorme”, documentário dirigido por Márcia Derraik e Simplício Neto.   Artistas de várias vertentes foram influenciados pela obra do sambista e o cantor, marginalizado e desprezado pela crítica musical, virou uma figura Cult e reverenciada.

    “Bezerra da Silva, produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo”, tese de doutorado da antropóloga Letícia Vianna publicada em 1997 foi um aceno e reconhecimento do universo acadêmico ao legado do cantor.  E nos anos seguintes, outras áreas do saber também beberam na fonte do sambista. Durante seu velório, “O dia em que o bambu partiu no meio” curta de Arthur Muhlenberg foi gravado a partir do depoimento dos artistas que foram ao Teatro João Caetano se despedir do Rei da Malandragem. 

    No gurufim de Bezerra, o saudoso Dicró, que partiria anos depois, quebrou o clima de tristeza e fez troça com o fato do amigo morrer justamente no dia 17/1. Não teve quem não risse da constatação da “coincidência”. 

    Em 2010 Marcelo D2, um dos seus discípulos declarados gravou um disco em tributo ao mestre e ainda repetiu a polêmica capa do “Eu não sou santo”, desta vez substituindo o “trezoitão” pelos microfones. Para celebrar a memória do sambista, a FLUP, Festa Literária das Periferias sob a curadoria de Ecio Salles (in memorian) e Julio Ludemir transportou o universo do Embaixador das favelas para a Literatura.  Com excelentes serviços prestados à cena literária periférica nacional por revelar nomes como Geovani Martins, Raquel Oliveira, Ana Paula Lisboa, Jessé Andarilho, Vivi Salles, Rodrigo Santos, entre outros, publicou o livro “90 anos de malandragem – contos inspirados nas canções de Bezerra da Silva”, produzidos por escritores oriundos da periferia e diversas favelas cariocas.  

         A figura de Bezerra da Silva segue viva e converteu-se num patrimônio e um dos símbolos da cultura popular e marginalizada que emergiu e segue pulsando forte nas favelas cariocas e nas periferias Brasil afora.  E seu cancioneiro segue mais atual do que nunca.

Evandro Luiz da Conceição é jornalista, escritor, roteirista e mestrando em Comunicação e Cultura pela UFRJ