Brasil não pode reclamar de Oscar sem negros

Nesta semana que hoje termina, algo extraordinário ocorreu: um negro brasileiro foi ouvido ao falar sobre a questão do negro brasileiro. Viralizou a fala do ator Babu Santana, participante do Big Brother Brasil, sobre a tese de que o mundo inteiro funciona para manter privilégios de homens héteros brancos. A estátua do Oscar é a de um homem hétero tão branco que chega a ser dourada. Só ouvimos as questões das minorias quando ditas pela boca deste homem. Por isso, a questão de representatividade no Oscar é tão importante. Em 2020, o evento voltou a invizibilizar negros e mulheres. No Brasil é diferente? Sabrina Fidalgo cineasta e colaboradora do blog Quadro-negro diz que não. É pior.

 

O Passe Livre Colonial – Por Sabrina Fidalgo

O poder da voz branca e sua reverberação na imprensa mundial em detrimento das vozes negras, indígenas, femininas e/ou LGBTQs se fez comprovar com toda a sua potencia na semana que passou. No dia 2 de fevereiro ultimo, o ator norte-americano Joaquin Phoenix – o favorito na corrida pelo Oscar de Melhor ator na cerimônia que acontecerá nesse domingo dia 9  – surpreendeu o mundo inteiro com seu discurso de agradecimento pelo prêmio de melhor ator por sua atuação em “Coringa” durante o BAFTA, a mais importante premiação da Academia de Cinema, Artes e Televisão da Grã-Bretanha. Phoenix, um homem branco, norte-americano e ator mais bem sucedido de sua geração, poderia se dar ao luxo de estar totalmente (auto) centrado em seus privilégios e apenas vivendo o auge de seu momento profissional atual, no qual esta no epicentro da atenções. Acontece que o artista, ferrenho ativista politico de varias causas, dedicou seu discurso inteiro a tecer duras criticas sobre a falta de representatividade negra na indústria do cinema e em suas premiações e ao racismo sistêmico da indústria de cinema de Hollywood (e do cinema ocidental como um todo) nas quais ele mesmo se colocou como sendo “parte do problema”.  

“Os Bafta sempre me apoiaram em minha careira, e estou profundamente agradecido. Mas também devo dizer que me sinto em conflito, porque muitos dos meus colegas atores que também merecem o prêmio não têm o mesmo privilégio. Acho que lançamos uma mensagem muito clara às pessoas negras: que vocês não são bem-vindos aqui. Essa é a mensagem que estamos enviando às pessoas que tanto contribuíram para o nosso meio e a nossa indústria, fazendo coisas das quais nos beneficiamos. Acredito que ninguém está pedindo caridade nem um tratamento preferencial”, prosseguiu Phoenix, “embora seja isso o que nos damos a nós mesmos todo ano. Essa não é uma condenação totalmente justa, porque me envergonha dizer que sou parte do problema. Não fiz tudo o que está em minhas mãos para garantir que todas as rodagens em que trabalho sejam inclusivas. Mas acho que se trata de algo a mais do que ter equipes multiculturais. Acho que temos que fazer um trabalho mais duro para entender p racismo sitematizado. Acho que as pessoas que criaram, perpetuaram e se beneficiaram de um sistema opressor têm a obrigação de desmantelá-lo. De modo que tudo depende de nós. Obrigado.”

A fala do ator foi um sopro de esperança no que tange a problemática do eurocentrismo em todas as cadeias de produção da indústria do cinema como um todo. Se nos Estados Unidos e Grã-Bretanha a situação esta longe do sonho de equidade, no Brasil a coisa continua muito mais complicada ainda. Porém, tal discurso tem sido a pauta do dia dos ditos  “grupos identitários” nos últimos 5 anos e somente após o discurso publico de um homem branco aliado da luta anti-racista a questão ganha a devida atenção e visibilidade global e o cinema finalmente “descobre” o racismo. Além de Phoenix outro surpreendente discurso anti-racista da noite do BAFTA foi proferido por ninguém mais ninguém menos que o Principe William, que recordou em sua fala a importância da diversidade na indústria cinematográfica britânica e da necessidade de assegurar tal questão no setor e no processo de entrega dos prêmios”.

A situação no Brasil, todavia, parece ainda pior, pois nem porta-vozes “brancos” temos. Senão, vejamos; dos 19 filmes brasileiros selecionados em mostras paralelas e na competitiva no Festival de Cinema de Berlim desse ano apenas três (eu disse três) são co-dirigidos por mulheres negras e uma indígena. O média-metragem “Vaga Carne” co-dirigido por Ricardo Alves Jr e pela artista multimídia negra Grace Passô,  o curta ficcional “Rã” de Julia Zakia e da atriz e performer negra Ana Flavia Cavalcanti, além de “Letter From a Guarani Woman in Search of the Land Without Evil” da realizadora guarani nascida na Argentina e residente no Sul do Brasil, Patrícia Ferreira Pará Yxapy. Dessa lista há vários filmes onde corpos negros desfilam certo protagonismo, inclusive sob a ótica colonial, mas pelo ponto de vista de diretores brancos brasileiros como é o caso de “Todos os Mortos” de Marco Dutra e Caetano Gotardo, dois diretores homens brancos brasileiros tematizando a problemática da escravidão (no caso pós-escravidão) sob o ponto de vista de uma família branca que perde sua empregada (e ex-escrava) negra que vem a falecer e com isso “desestabiliza a família branca”. Novos tempos. Velhas narrativas. Velhos olhares.

Se as discussões sobre a presença negra no cinema e no audiovisual como um todo começaram a ganhar terreno nos últimos cinco anos culminando com a abertura de editais com cotas raciais, chegamos a conclusão hoje, 2020, que quem mais se beneficiou novamente foram os homens brancos que, leram bem a cartilha da militância, e continuaram a realizar seus filmes com editais públicos e o apadrinhamento curatorial. Senão vejamos; onde estão os filmes de realizadores e produtores negros?

Temos agora no Oscar “Democarcia em Vertigem” documentário de Petra Costa que revisa os momentos finais da transição da “Era-Lula – Dilma” e o inicio do “golpe” tendo como pano de fundo a historia da própria diretora. Sendo a Era-Lula, sobretudo, o primeiro e único governo que, de fato, tirou da miséria milhões de brasileiros, criou cotas raciais e viabilizou o acesso a universidade para primeiras gerações de pessoas negras em suas famílias, seria muito mais interessante ter pessoas dessas camadas realizando obras semelhantes, expondo suas narrativas e tendo o mesmo tipo de visibilidade. Porém nada mudou no Brasil eurocentrado que sonha em ser Europa e que privilegia apenas uma pequena camada de privilegiados históricos que agora usurpam das narrativas em voga sob a premissa da “diversidade”.

O “mercado” entendeu o recado e sacou que não mais poderia continuar forjando um Brasil eurocentrado e eugenísta. Logo, o mercado também entendeu que a maioria das “minorias” está numa alavancada rumo ao controle do capital, vide o “Black Money”, o “Pink Money”, o “Pussy Money”  e afins. E aí o que o mercado faz? Ele começa a “produzir” conteúdo para essas demandas, mas quem esta por trás de tanto sucesso? Homens, brancos, hetero, cis, da elite. Todos esses projetos, em quase sua totalidade, são dirigidos e produzidos por pessoas brancas. Parece que o “mercado” finalmente entendeu esse “filão” da “diversidade” (diversidade para quem? E sob qual ponto de vista mesmo?).  Porém, os atores protagonistas continuam sendo os mesmos atores protagonistas de sempre, os detentores do poder. Os que legitimam. Os que dão as coordenadas. Os que definem. Os que se beneficiam diretamente. Os que lucram. A proveniência do tilintar das moedinhas caindo na Caixa-Forte agora tem novas e diversas faces. Mas os donos dos cofres seguem colonizando o mercado igual fazem desde os primórdios da grande fazenda colonial no Sul Maravilha. Para sobreviver no Brasil de hoje, é necessário a criação de uma bula contra o modus operandi genocida pós-colonial impregnado no DNA nacional.

Sabrina Fidalgo, 40, é cineasta, roteirista, atriz e produtora dos filmes “Rainha” (2016) e “Alfazema” (2019).