SP teve o seu dia de ‘Parasita’

A cena central do filme “Parasita” é a de uma chuva que cai sobre a cidade de Seul, inundando a casa e cobrindo todos os móveis e pertences de uma família ao mesmo tempo que uma família rica tem uma noite aconchegante no sofá em seus pijamas de seda. No dia seguinte, a mãe da família rica comenta na presença de seu motorista, o chefe da família pobre que perdera tudo na enchente:

– A chuva que caiu ontem limpou o céu poluído, foi uma benção.

Ontem, São Paulo amanheceu debaixo d’água. Muita gente perdeu tudo. No twitter, a hashtag mais usada por paulistanos era… #homeoffice . Moradores da cidade bendizendo o temporal porque ele havia dado a possibilidade de trabalhar no conforto de casa.

Não demorou e chegaram os Memes, claro. Uma linha alagada da CPTM logo foi transformada em “versão live action de A Viagem de Chihiro”. Enviei para uma amiga, militante negra, muito braba, da zona Leste, que logo pela manhã sofria a agonia do medo de perder o emprego caso não chegasse ao centro da cidade até o meio dia. Estava em fase de experiência no emprego e dependia do funcionamento do transporte público da cidade. Ela viu o meme e comentou.

– Querem nos invisibilizar. Mas não somos invisíveis. O brasileiro é que quer ser outra coisa, um não-brasileiro, um não parte do coletivo que inclui a todos, do mais rico ao mais miserável. Fazemos memes para nos fantasiarmos de “cidadãos do mundo”.

Aderir ao comportamento do opressor para sentir-se menos oprimido.

Mas, como disse o diretor de “Parasita”, vivemos todos no mesmo país. Onde até o odor das coisas, segundo ele, “é uma questão de classe social”.

Nas redes sociais, esse Brasil que quer ver-se internacional, viralizou também a imagem de um Lamborghini Huracán 2015, avaliado valer 1 milhão de meio de reais, alagado dentro de uma garagem. A foto e a notícia foram para a capa dos veículos de comunicação. Nenhuma foto de alguma das muitas pessoas em situação de risco foi destacada durante a terça-feira.

É que gente em enchente não é novidade. Carro de luxo sim. E o que é novidade tem mais valor. Tanto para quem publica, quanto para quem lê.

Na Coréia do Sul, a desigualdade social é filha da desregulamentação do mercado, esse parasita.

No Brasil, há mais água embaixo da ponte. Para além do “Chaebol” coreano. Há a questão racial.

São Paulo teve o seu dia de “Parasita”.

Mas para o negro brasileiro, em todo lugar, todo dia é dia de “Parasita”.

Chuva, sol, água, fogo. Todas as precipitações da natureza causam estrago aos vulneráveis. Aos que vivem à margem.

O capitalismo, para surgir, criou a população marginalizada. Para prevalecer, a alimenta. Para evitar seu crescimento, a expõe aos fenômenos naturais. Para garantir sua hegemonia, coloca, como no filme, pobres contra pobres  (como nas guerras de facções de crime organizado no Rio) enquanto ricos se alienam até mesmo de sua presença, notando-os apenas quando um deles não é catador de bolas de tênis no Clube Pinheiros.

Parasita, uma vez Bong Joon Ho explicou em entrevista, é “também a crença de que o capitalismo nos salvará a todos. Uma crença que se alimenta de nossa esperança de que tudo vai dar certo desta forma e assim nos devora”.

Estaria, então, o diretor coreano incorrendo em hipocrisia ao submeter seu filme à validação da indústria americana? Não. Está ele fazendo o mesmo o que a família pobre no filme faz com a família rica. Disfarçado, se infiltrar e lá bem suceder. Não é uma escolha. É o único jeito que há, ainda que precário e violento consigo próprio.

Enquanto paulistanos fazem memes com chuva e cariocas de classe média, toda vez que chove, comentam que “foi bom para refrescar”, americanos fazem algo parecido. No Oscar 2020, premiaram “Parasita” para ignorar o filme US (Nós), de Jordan Peele, que em tudo se parece com o filme coreano. O contraste entre famílias, uma que vive nos porões para sustentar a outra, alienada das engrenagem que a mantém no topo.

No Oscar, americanos disseram que o problema não é deles (de “Nós”, evocando o título transcendental do filme de Peele). Que é “dos coreanos”. Ignoraram também “Coringa” (mesmo sendo o filme um sórdido sequestro da pauta dos negros americanos, e principalmente da mulher negra americana, praticamente uma refilmagem do filme “Preciosa” obra-prima de 2010) para dizer que a questão de saúde pública que ali se trata não se passa nos EUA (Ou “US”).

Em breve as águas em São Paulo baixam e vira-se a página. Voltará a garoa inofensiva: a que não alaga carros de luxo, ainda que promova a degradação do solo de áreas de risco onde moram pobres.

E, num dia de garoa, quem sabe Paulo Guedes pode colocar seu pijama de seda e, no conforto de sua casa, assistir a Parasita no streaming, em breve.

Em breve tudo volta ao normal.

Nós, principalmente nós negros, sabemos.

Já vimos esse filme.