Carnaval, desejo e utopia

Dodô Azevedo

Na última quinta-feira, realizou-se mais um desfile do bloco carnavalesco Loucura Suburbana.

Fundado há 20 anos no Instituto Nise da Silveira, a agremiação é formada por internos da famosa instituição de saúde mental hoje batizada com o nome desta alagoana que revolucionou o modo que tratam pacientes. Ao invés de eletrochoques, arte.

O samba deste ano disse “Tem maluco que sabe que é maluco. Tem maluco que acha que é normal.”

Enquanto o país passa por situações malucas que achamos que são normais: retroescavadeiras, falsa autópsia de corpo de chefe de milícia postado em redes sociais por senador envolvido com escândalo de corrupção,  presidente, pai do senador envolvido em escândalo com bandidos, fantasiando sua própria incompetência com cortinas de fumaça como a recente e ultrajante ofensa às mulheres via ataque à jornalista da Folha, dólar recorde, ministro da economia que parece ter se formado na Escolinha do Professor Raimundo, Ministro da Educação com a idade mental de uma criança no jardim de infância. Por muito menos, já batemos panelas.

Tem maluco que acha que é normal.

O bloco Loucura Suburbana desfila no coração do subúrbio carioca. O bairro do Engenho de Dentro é residencial, de casas de muros baixos e de metabolismo manso. Durante o cortejo, vemos centenas de crianças, a maioria pretas, brincado livres entre os foliões. Muitos deles, seus pais, destes que não têm medo de que seus filhos tenham vivência de rua na infância.

Outro trecho do samba deste ano do Loucura Suburbana: “Doutor, vem ver o que acontece na cidade”.

No outro lado da cidade, onde vive a classe média alta e, por isso, há maior proteção da polícia (cuja função secular é proteger a elite cidadã), as crianças vivem trancadas em casa. Seus pais tem medo de seus filhos brinquem na esquina. Quanto mais privilegiados com proteção do Estado, mais medrosos são.

Mais um trecho do samba deste ano do Loucura Suburbana: “É a loucura que afefa todos nós”.

Nos blocos que não são do subúrbio, não se encontra negros. A não ser como camelôs, vendendo bebida para amainar o calor dos jovens sinhôs e sinhás que, ironicamente  vestem bandeiras como a da diversidade.

Mais um trecho do samba deste ano do Loucura Suburbana: “O povo endoida de felicidade”.

No fim do cortejo, uma foliã distribuía, de graça, para quem quisesse, um adesivo onde se lia apenas duas palavras: “Desejo” e “Utopia”. Mais nada. Logomarca de produto algum, de instituição alguma. Alguns foliões certamente pensaram “ela deve estar maluca, dando algo de graça que não faz propaganda de nada”.

Mais um trecho do samba deste ano do Loucura Suburbana: “Nesse desfile, todos têm a sua voz”.

Desejo e utopia. Taí. A história do Brasil é, antes de tudo, a história do censura dos desejos. Da castração das utopias. Taí. O que urge é mantermos vivos tanto nosso desejo quanto nossas utopias. É o que não podemos deixar que nos tirem. É a última coisa que ainda podemos ter, de graça, colado no peito, numa tarde de verão.

Último trecho do samba deste ano do Loucura Suburbana: “O meu remédio é brincar o carnaval”.

O engenho, a sabedoria, tem que vir de dentro. Bairro Engenho de dentro. Coração do subúrbio.

As utopias centrais já não nos servem mais. E nossos desejos periféricos nos consomem induzindo-nos a consumir e olhar apenas os centros do que existe.

Ouçam os clarins: Agora é a vez de olharmos para o coração do desejo.

Sintam os tambores: Agora é a hora de visitarmos os subúrbios da utopias.

Vá para a rua com algo no peito.

É carnaval.

Foto: O bloco Loucura Suburbana desfilou na quinta-feira (20), abrindo o Carnaval do Rio de Janeiro (Jô Hallack/Acervo pessoal)