Cristo é detalhe: como foi desfilar pela Mangueira

Antes de mais nada, informo: Cristo não me interessa. Os pensadores, filósofos, além dos ensinamentos de Orixás, todos donos das ideias originais que constituem no que hoje conhece-se como “o pensamento de Cristo”, sim. Tudo o que foi apropriado para compor o personagem de Jesus é mais sofisticado, feito para o mundo melhor e menos binário que fomos milhares de anos atrás.

Também não entendo índios e negros que adotam o cristianismo: a religião do opressor, criada por quem os escravizou e os exterminou.

Mas a figura de Jesus interessa muita gente. É um veículo pop. E se hoje, para difundirmos ideias que possam proteger o povo preto, é necessário evocar a figura do nazareno, que seja. Usemos e abusemos. 

Dos modos mais conhecidos de se entrar para uma escola de samba, dois se destacam. Comprar fantasia ou ser aceito pela comunidade. Entrar para comunidade exige comprometimento com, por exemplo, ensaios técnicos desde o ano anterior ao carnaval. E não é qualquer um que é chamado para integrar uma comunidade, principalmente uma tradicionalista como a Mangueira. Ser aceito significa vitória como gente.

E a garantia da sublime convivência durante o ano com o povo da comunidade. O chamado chão da escola.

Meu primeiro desfile pela Estação Primeira de Mangueira foi nos anos 80. Em 2019, a comunidade me acolheu dentro dela. Vitória. Desfilei e fomos campeões. Vitória da vitória. No domingo passado, voltamos à avenida para, falando de Jesus, falarmos de ideias ancestrais, que para nós são hoje urgentes.

Os ensaios semanais tornam a comunidade uma espécie de irmandade. Só nós sabemos dos dias em que não conseguimos chegar na quadra por causa de enchentes. Só nós sabemos de nossas gripes, febres, de parentes que morrem no período, de nossa ansiedade com como o samba será recebido na avenida, como será nossa fantasia, se este ano ela irá machucar no calcanhar ou fazer sangrar os ombros, se irá fazer calor ou chuva, se estamos evoluindo bem pela avenida.

Coordenadores de ala se tornam, por cinco meses, uma figura de referência e proteção mais presente do que terapeutas, guias espirituais, médicos da família. Vivemos pela escola e para a escola. Vivemos juntos o arrepio na espinha da semana anterior ao desfile, as insônias das vésperas, o frio na barriga pouco antes da escola entrar na avenida, o pranto radiante, espécie de auto-superação para cada um, as lágrimas.

Este ano o aquecimento global esfriou a temperatura da Sapucaí. Menos desmaios, tetos-pretos e pressões baixas durante o desfile. Menos drama. Este ano, a Mangueira, atual campeã, atraiu muitos turistas do Brasil e do mundo. Compraram a fantasia. Aprenderam o samba em cima da hora. Quem fica responsável por cantar dobrado, para compensar, é a comunidade.

E cantamos dobrado. No trecho “Favela, pega a visão. Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão”, alguns integrantes, meses atrás quando começamos os ensaios, faziam o famigerado gesto de arma na mão. Parávamos e explicávamos, ao microfone: “Atenção integrantes. Ninguém fazendo símbolo de arma na mão, por favor. A Mangueira é uma instituição que tem responsabilidade social.” – dito e feito. Pegamos a visão.

E pegamos uma Sapucaí fria, com muitos turistas nas arquibancadas. Desfilamos em horário nobre. A maioria das pessoas na platéia sequer sabe distinguir a diferença de uma Escola de Samba da outra. Está ali apenas para ver as primeiras três escolas, sejam quais forem, e voltar para o Hotel para dormir e ir à praia no dia seguinte.

Luxuosa como nunca, vestimos fantasias e carregávamos estandartes deslumbrantes, criados pelo gênio de Leandro Vieira. Eu estava na penúltima ala. Isso significa que quando entrei na Sapucaí a comissão de frente já havia encerrado o desfile, na outra ponta, Praça da Apoteose. A sorte já estava lançada. Cabia a nós encerrar o desfile com a energia que a escola antes de nós instalara na avenida. Parecia não ser fácil.

Quando avistamos no horizonte da avenida, de costas, a alegoria do Cristo negro crucificado e cravado de balas. A nossa cruz. A cruz que todos, inclusive você, leitor, carrega. Tudo no desfile da Mangueira foi para cravar que somos um coletivo. E que apenas funcionando como um, jaz a chance de um mundo melhor. Miramos no imenso crucifixo na avenida e fomos.

Fomos, como diz nosso samba-enredo, “o desabafo sincopado da cidade”.

A impressão, no chão da escola, desfilando, é que houve um impacto tão solene na avenida que tudo já não parecia mais só um desfile. Parecia uma procissão. Uma passeata política. Uma peregrinação. Religiões são sistemas de crenças. Escolas de samba também.

No final do desfile, retirando a fantasia ensopada de suor e delícia, há um silêncio entre os componentes. Entre a família, a fraternidade, a nação que acabou de percorrer a avenida. Ninguém se fala. Pouco até se cumprimenta.

É porque não inventamos ainda palavras que queriam dizer o que gostaríamos de falar após o desfile. Palavras são precárias para descrever algo tão conectado ao nosso eu primal, ao animal que ainda vive dentro da gente. Palavras não dão conta. Silêncio, sim. Tambores, sim.

E então, só no final, percebemos que nosso desfile não foi sobre Cristo. Nenhum desfile de nenhuma Escola de Samba é, no fundo, sobre as práticas primitivas e esquecidas após a barbárie civilizatória. Todas as Escolas de Samba são agremiações que formam coletivos que, juntos, passarão pela experiência de conectar-se com sua ancestralidade mais profunda.

Todo desfile de Escola de Samba, por mais turistas e brancos que estejam, por mais que fale de deuses usados para o extermínio de africanos e descendentes, é macumba.

E, no caso da Estação Primeira de Mangueira, História do Brasil.