Cineasta negra brasileira diz que série de TV é a segunda morte de Marielle
Sabrina Fidalgo e Spike Lee lançaram filmes em 2016. Ele, o incrível longa “Infiltrado na Klan”. Ela, o incrível média-metragem “Rainha”. Em 2016, o trabalho de Sabrina, exibido no Brasil e no exterior, recebeu mais prêmios, nacionais e internacionais, do que o longa de Spike Lee. No fim de semana, a produtora da série que será feita sobre a vida de Marielle Franco, afirmou não haverem Spike Lees no Brasil. O que Marielle Franco diria disso? O que o negro, e principalmente a mulher negra, tem que fazer para se tornar visível? Submeter-se a papéis secundários em meios de produção? Baixar o tom, à guisa de construir pontes com interlocutores? Gritar? Ou baixar o tom, com receio da repercussão? Afinal, a sociedade brasileira, em todo o seu espectro, não tolera a cólera de negros. Escrevendo para o Quadro-negro sobre o assunto que fez o domingo de 8 de março convulsionar, eis o berro de Sabrina. O berro da mulher preta brasileira.
Marielle Franco é executada pela segunda vez – Por Sabrina Fidalgo
No dia internacional da mulher, Antônia Pellegrino, a roteirista, co-criadora da plataforma feminista “Agora é Que São Elas” e companheira do deputado federal pelo PSOL, Marcello Freixo, concedeu entrevista a UOL para justificar o injustificável; a infeliz escolha de José Padilha ( “Tropa de Elite 1 e 2” e da série “O Mecanismo”) como diretor do projeto da série ficcional “Marielle Franco”, criada pela própria Antônia. O projeto é uma co-produção da sua produtora “Antifa Filmes” (ironicamente nome inspirado na corruptela em alemão de “Antifaschistische Aktion”” = ação anti-fascista, movimento da esquerda surgido na Alemanha precedendo a ascensão do Nazismo) com a Globoplay, que visa exibir a obra na plataforma streaming.
Entretanto, dois dias antes, a Rede Globo, através de uma nota, comunicou oficialmente sobre a realização da série ficcional sobre a trajetória da vereadora carioca pelo PSOL, Marielle Franco, executada na noite do dia 14 de março de 2018 (crime esse que até hoje segue sem esclarecimento).
Marielle, mulher negra, mãe, favelada, bissexual, militante do feminismo negro, ativista dos direitos da comunidade LGBTQ e defensora dos direitos humanos, se converteu instantaneamente, após sua trágica morte, em símbolo da luta contra as desigualdades no Brasil e no mundo. Logo, seria normal o interesse por parte de produtoras e realizadores em levar sua historia para as telas de cinema ou streaming, mais cedo ou mais tarde.
Marielle adentrou na vida política no ano de 2006 desempenhando o papel de assessora parlamentar do primeiro mandato de Marcelo Freixo como deputado estadual, mas logo assumiu a difícil tarefa de ser a coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio. Dez anos depois, com o total apoio de Freixo, se elegia como a quinta vereadora mais votada daquela campanha.
Paralelamente, Antônia Pellegrino – que começou a ganhar certa notoriedade com o advento da primavera feminista a partir de 2015, graças a seu engajamento dentro do movimento feminista interseccional – a essa altura engatava relacionamento com Marcelo Freixo e logo se tornaria mais próxima da promissora vereadora da Maré.
Segundo Pellegrino, o projeto da série está sendo tocado há cerca de dois anos, praticamente o mesmo tempo do desaparecimento de Marielle.
Aparentemente a convivência com Freixo facilitou a confabulação e realização do projeto. Até aí, tudo bem. O que, de fato, chama a atenção nessa história são dois fatos pertinentes; o convite da feminista interseccional Antônia a dois homens brancos (o diretor José Padilha e o roteirista George Moura) a ocuparem os lugares de maior prestigio na cadeia evolutiva da criação da série.
Ao todo, são três profissionais brancos a frente do projeto de série sobre a vida da maior ativista negra brasileira da contemporaneidade.
José Padilha, é o diretor da narrativa que romantizou e naturalizou nas telas de cinema a violência policial na franquia “Tropa de Elite 1 e 2”. Já em “O Mecanismo”, série produzida para a Netflix, Padilha viria a exaltar a figura do juiz Sergio Moro, da operação “Lava Jato”, e que, após a eleição de Jair Bolsonaro, se tornaria o grande defensor das milícias (a mesma que, tudo leva a crer, tem envolvimento direto no crime que ceifou precocemente a vida da vereadora).
Na noite da execução de Marielle, Padilha e convidados brindavam, por entre os salões do Copacabana Palace, a estreia da primeira temporada de “O mecanismo” na Netflix.
Dito isso, a notícia desse combo de protagonismo branco à frente do projeto já seria escandalosa o suficiente para gerar uma infinidade de protestos e debates fora e dentro da web, mas a entrevista que Antônia concedeu ao portal UOL, publicada na tarde desse domingo último, para justificar suas escolhas (apesar da enxurrada de criticas em suas redes sociais) me impede de exercer sororidade para com a roteirista.
O resultado está sendo uma onda de revolta na comunidade negra, entre os profissionais do cinema independente e no meio das artes e da cultura em geral. Na entrevista, ela responde sobre a criticada escolha de Padilha para a direção do projeto ; “sou progressista e não punitivista. Ele (Padilha) se arrependeu.(..) As pessoas erram. E não acho que seja um erro suficiente para a gente cancelar uma pessoa”
A roteirista ainda delega ao diretor José Padilha e ao produtor Rodrigo Teixeira a única possibilidade de internacionalização do projeto.
Mais adiante, e num dos trechos mais problemáticos da entrevista, ela afirma que chegou a “pensar” em ter um diretor negro no projeto e arremata com a seguinte frase; “Se tivesse um Spike Lee, uma Ava DuVernay…” suspirou, levando a crer que no Brasil não há cineastas negros a altura dos norte-americanos por ela mencionados.
A roteirista celebra dois dos maiores diretores autorais estadunidense (Lee e DuVernay) levando a crer que José Padilha, na minha opinião um medíocre diretor de blockbuster que segue a cartilha do mercado (vide o fracasso de público e crítica de sua aventura pelo gênero, na sua refilmagem de “Robocop”) estaria a “mesma altura” dos americanos, numa falsa simetria equivocada, para dizer o mínimo.
Pellegrino ainda tentou consertar essa emenda com um esclarecimento editado posteriormente na mesma entrevista. Tarde demais, pois o estrago já estava feito. Com essa afirmação, a roteirista não só se mostra desatualizada do Zeitgeist atual, onde a diversidade é o segredo do sucesso e o novo “modus operandi” nos quatro cantos do globo, como também menospreza nomes mais premiados e com trabalhos muito mais conhecidos, relevantes e consistentes do que os que constam em seu próprio Curriculum Vitae.
Nomes esses como : Adélia Sampaio, Carmen Luz, Lilian Solá Santiago, Jeferson De, André Novais de Oliveira, Gabriel Martins, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Glenda Nicácio, Thiago Almazy, Lázaro Ramos, Jéssica Queiroz, Irmãos Carvalho, Jô Bilac, Grace Passô, entre muitos outros. O jovem cineasta negro paulistano, Diego Paulino, diretor e roteirista do curta “Negrume”, por exemplo, no curto período de apenas um ano recebeu mais de 40 prêmios por seu filme. Certamente um recorde na cinematografia nacional que sequer foi divulgado na grande imprensa. Mas, ao contrário de Antônia, Diego segue desempregado…
O oportunismo e a ganância na corrida de “quem leva mais” com a tragédia da vereadora carioca chegaram em seu nível máximo de crueldade; Marielle, nessa história toda, está sendo executada pela segunda vez.
A pessoa que bradava pela inclusão de mulheres negras em toda a cadeia evolutiva da pirâmide social brasileira (chegamos a participar, ela e eu, juntas, de um potente debate com outras importantes mulheres negras, no final de 2017, promovido pela Mídia Ninja) e que fez disso a sua maior bandeira em vida; que pregava pela equidade de gênero e raça em todas as áreas e que morreu lutando por justiça para com os negros e os menos favorecidos ameaçados pelas milícias, não merecia ter um (ex-)defensor de seus algozes como diretor de uma série sobre sua vida e que, além de tudo, é escrita por homens e mulheres brancos pertencentes de uma exclusiva elite financeira e intelectual.
Não, Marielle não merecia ser usada em produtos que exaltarão e enriquecerão, mais uma vez, a mesma branquitude privilegiada de sempre. Não, definitivamente, Marielle não merecia ter um projeto que contará sua vida através desse olhar “pseudo-feminista”, que corrompe o conceito de interseccionalidade em detrimento da manutenção do racismo estrutural, do silencioso pacto narcísico da branquitude, do patriarcado e da manutenção do sistema opressor e genocida que mata em vida os menos privilegiados como a própria Marielle, retirando deles a possibilidade de sonhar, de mudar os rumos de suas histórias, de seus futuros e do futuro de um país historicamente injusto e desigual.
Marielle não merecia ter uma voz que menospreza seus irmãos por eles não pertencerem ao “seleto grupo de ricos afro-americanos diretores e roteiristas de Hollywood”. Marielle não merecia ter sua história contada por esse viés colonizador. Marielle não merecia ser representada por pessoas que querem usar seu corpo negro apenas como passaporte para possíveis Emmys e Oscars negligenciando, deturpando e muito menos sendo sub-representada pelos seus irmãos, num ato covarde e cínico de esmola colonial. Mas Marielle é também Iansã. E Iansã faz ventar. E ela também saberá fazer ventar tudo aquilo que não presta e não tem concerto.
Após o anuncio da série sem pessoas negras a frente do projeto, foi lançada uma carta de repudio capitaneada pela diretora e roteirista paulistana Renata Martins e com mais de duzentas assinaturas até o presente momento. Alguns trechos importantes do texto que merecem a leitura:
“É revoltante. No entanto, numa sociedade capitalista, não surpreende que a história de uma mulher negra seja contada a partir do ponto de vista de três pessoas brancas. A única surpresa é o fato de terem demorado tanto pra anunciar o projeto, haja vista a sanha que eles têm de se apropriar dessa história há tanto tempo. (…)
É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra, LGBT+, favelada, mãe, filha, irmã e esposa. Para defender sua propriedade de contar a história de Marielle, Antonia Pellegrino usou como argumento: “eu a conhecia muito bem”, “eu ajudei na sua primeira campanha”, “eu segurei o seu caixão”. (…)
Mas a mesma pessoa que diz ter se inspirado em Marielle e diz ter respeito pelo feminismo negro, se lança como arauto para contar essa história aliada aos seus pares, masculinos e brancos. Tudo isso é extremamente violento. É um desrespeito a tudo que Marielle defendia.
Se quaisquer dessas pessoas tivessem entendido de fato a luta de Marielle, saberiam o quão violento é fazer esse projeto encabeçado apenas por pessoas que não refletem sua imagem e semelhança. Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história. Um valor que vai ficar na mão daqueles que sempre dominaram o audiovisual no Brasil. (…)”
Sabrina Fidalgo é produtora, roteirista e diretora de “Alfazema” curta premiado no último Festival de Brasília de Cinema.