Enfermeira do SUS escreve sobre a tragédia da quarentena seletiva
Desde que quarentena tornou-se a palavra de ordem, setores do movimento negro começaram a atentar para seus efeitos colaterais em um país onde os direitos trabalhistas sofreram desmonte. Onde o estado foi enfraquecido e todos colocados sob a tutela do mercado, que não socorre nada que não seja a si mesmo.
Foi entre o movimento negro que começou-se a falar de “quarentena seletiva”. Como se sente a população de rua quando ouve a ordem “fiquem em casa?”. Quantos estão sendo monitorados e cuidados? Quantos já estão infectados e não entraram para as estatísticas porque não influem no temperamento das bolsas de valores? O que fazer com os milhões de trabalhadores que foram no último ano empurrados para a informalidade e permanecem sem direito à quarentena?
Na Europa medieval, época da peste bubônica, os senhores feudais colocavam-se em quarentena trancando-se em seus castelos. Levavam alguns serviçais e deixavam o povo de fora.
Não tem dado certo hoje. Altos escalões de governos, presidentes de bancos, pessoas que retornaram de uma temporada de esqui em Aspen, pegaram o Coronavírus. As perdas na economia de nossos feudos contemporâneos chegaram a níveis que há muito não se via. O mundo, então, mobilizou-se de forma inédita. Quando esta pandemia passar, a humanidade tornará a se mobilizar desta forma por epidemias que ainda estarão por aí, mas afetam apenas pobres?
A Espanha estatizou seus hospitais, porque o mercado é o primeiro rato a abandonar barcos em risco. A sociedade brasileira deveria pressionar, que seja do sofá, por uma ação do poder público que garanta direito à quarentena ampla e irrestrita? Militar pela derrubada da EC-95 é um bom começo.
Crises, sejam elas de que tipo forem, revelam o caráter de uma sociedade. Na que construímos, a última a ser ouvida, como sempre, é a mulher preta periférica. Aqui, no Quadro-negro, não. Sem a obrigação de responder questões, Bruna de Souza, enfermeira do SUS, negra, zona leste de São Paulo, escreve, direto da linha de frente desta guerra, para o blog.
Capitalismovírus – Por Bruna Luana de Souza – Enfermeira do SUS
O processo saúde-doença é, todos sabemos, o reflexo da interação entre indivíduos.
Mas, antes de tudo, da interação entre comunidade e seu meio ambiente.
Em tempos de pandemia, uma oportunidade. A de repensar o conceito saúde-doença que se baseia em num modelo biomédico/ hospitalocêntrico, focado apenas e tão apenas em agentes etiológicos e medidas higienistas.
Há no SUS atividades que buscam alternativas: ações interdisciplinares e biopsicossociais, infelizmente não têm visibilidade por parte de nossa sociedade. Estamos pagando o preço.
Diante do novo coronavírus, é necessário consideramos os impactos econômico-sociais de práticas decisórias que podem vir a ser mais letais do que o próprio vírus.
Como sempre, população pobre não foi ouvida à respeito do que fazer com esta pandemia. Não há um pacto social verdadeiro em nosso país. O falado momento de união valeu apenas para o topo da pirâmide.
Percebam que em ciclos de situação calamitosa antecessores e análogos ao que o mundo passa neste momento, as crises econômicas e epidemiológicas ocorreram concomitantemente. Usando uma metáfora médica, modelos neoliberais revelam-se, em momentos assim, biologicamente patogênicos e letais.
Importante discutirmos, principalmente nós, profissionais da saúde, sobre o quanto nossas medidas de promoção de saúde e prevenção de doenças contêm resquícios higienistas e tornam-se seletivas.
Quem, de que classe e que cor, tem acesso à água e/ou álcool 70%? Quem pode ficar em home office?. Que população pode continuar a ser exposta à estes agentes patogênicos cotidianamente? Os milhões de trabalhadores empurrados para informalidade ou o trabalho precarizado dos aplicativos de serviço? Os motoristas de ônibus? A população de rua? A população carcerária? Quem são nossos descartáveis?
Cancela-se congressos, apresentações, aulas nos grandes centros de produção de conhecimento, o fluxo entre fronteiras. Mas a exploração da mão-de obra, não. A escalada da precarização do trabalho não entra nesta equação.
O fluxo do mercado como um show que não pode parar é o maior inimigo de qualquer pandemia.
As propostas de construção de modelos político-econômicos comunitários e sustentáveis, portanto não brancocêntricos, são mais que necessárias.
São urgentes para a manutenção da saúde de todas as populações.
E a única chance de haver união de fato, e não pacto de branquitude disfarçado.
Ouvir-nos é urgente para a garantia de nossas existências.
Bruna Luana de Souza Farias trabalha na pediatria do Hospital Universitário da Universidade de São Carlos – SP