Rincon Sapiência: o mundo em quarentena é um novo mundo em gestação

Das incertezas que a pandemia de Covid-19 trouxe à respeito do futuro, algo é certo. Quando estiver terminado, terá matado, em todo mundo, mais negros do qualquer outra raça. E assim seria com a pandemia do que fosse. Não porque negros tenham menos anticorpos para moléstias. Mas porque o próprio corpo negro é considerado um anticorpo, um subcorpo. À nossa revelia, somos todos os dias confinados ao grupo dos mais vulneráveis a tudo. Violência policial, políticas trabalhistas, viroses e infecções. Tudo maltrata o corpo preto. Chibatas contemporâneas. Mas, debaixo destas peles, há os cérebros. Ninguém entende mais do mundo do que a gente preta. Filosofia e matemática, física e poesia foram invenção de gente preta, no passado glorioso do continente mãe de todos nós. Então, quando um pensador preto finalmente divide conosco, em artigo exclusivo para o Quadro-negro, que futuro e que sociedade vê emergindo quanto tudo isso terminar, agradecemos à sapiência preta. Agradecemos a Rincon Sapiência.

 

Covid-19 e a nova sociedade – Por Rincon Sapiência

Antes de filosofar sobre esses últimos fatos que afetam toda população mundial preciso falar da minha relação com a rua. Discreto e observador, mas antes de tudo paulistano: a multidão e o ritmo frenético não me assusta. Sensível para calcular o tempo quando atravesso a rua fora da faixa, caminho entre os carros, conheço o melhor vagão do metrô para sair em frente às escadas e seguir na baldeação. Sem contar toda vivência na Cohab 01, bairro onde sou nascido e criado. Motos com o escapamento pipocando, carros tocando música em alto volume e pessoas em massa ocupando ruas e praças. Diante de todas essas experiências é chocante quando num estalo a orientação é a seguinte: fique em casa.

Depois de tantos carnavais me encontro em uma condição diferente, há muito tempo não faço trajetos no transporte público e há pouco mais de um ano sou eu quem segura o volante e passo as marchas do câmbio. Quando não estava disposto a cozinhar escolhia aonde comer e nas horas vagas pós-trabalho qualquer entretenimento era possível, trabalho muito e tinha a cidade na palma da mão como recompensa. Bom, acho que posso começar a filosofar agora.

Meus primeiros dias de quarentena foram péssimos, inconformado deixava o tempo passar na expectativa de uma notícia positiva, mas no fundo sabia que seria um longo período. Lavar as mãos foi algo que apareceu com intensidade nas campanhas, algo que minha mãe sempre dizia, mas depois da vida adulta e a “independência” muitas vezes chegava em casa sem tirar o tênis, sem lavar as mãos e já pegando algo para comer ou enchendo um copo com água. Depois do trabalho a ideia de fazer algo era uma constante. Hoje já consigo me dar conta que era simplesmente um desejo de “honrar” meu tempo vago, mas nesse processo desconsiderava que fazer algo poderia ser dormir e acordar melhor no dia seguinte, cozinhar meu rango para não ter que comer fora, economizar com combustível, estacionamento e acima de tudo energia.

O sentimento de culpa pode ser o reflexo dessa filosofia toda, mas pensando mais a fundo não se trata de um problema particular e das minhas desordens, e sim, de um projeto de sociedade baseado no consumo. Se imagine numa festa, por exemplo, sem um copo na mão ou algo para fumar. Esse é o perfil do “deslocado” e essa posição não é nada interessante, queremos mesmo é estar alocados, ser visto como descolado. Sim! Um cantador de rap faz rimas mesmo quando escreve uma coluna no jornal. Nessa grande festa que é a sociedade o lema é: “consuma ou suma” e nesse processo nos adoecemos e levamos o planeta junto. A maior crise social que já vi na vida, um vírus que por enquanto não existe um tratamento efetivo. Vejo a população recuar, dos mais carentes aos mais poderosos, e com isso a natureza pulsa melhor e a verdade se escancara na nossa cara. Aquele antigo ritmo perdeu o balanço, estávamos equivocados em nossos anseios e precisamos urgente voltar algumas casas nesse tabuleiro do jogo da vida.

Ainda sinto falta da velha rotina, se tudo voltar ao “normal” amanhã por exemplo, não prometo que seguirei nesse ritmo de agora, mas a mensagem é nítida sobre o como estávamos errados em nossos projetos. A expectativa é que tudo isso se resolva o mais breve possível e a dúvida que fica é: se tudo isso passar, estaremos prontos para uma nova sociedade?

Rincon Sapiência é MC, produtor musical e empresário