Protagonismo negro é antídoto para país doente
Na noite em que a doutora Thelma, preta retinta, foi eleita campeã do BBB 20 pelo voto popular, o PT de Salvador, cidade com mais negros fora do continente africano, escolheu pela primeira vez uma negra para seguir candidatura à prefeitura da cidade. Parece que a esquerda está aprendendo que só voltará ao poder se colocar pretos em posição de comando. O Brasil, também. A impressão é que, hoje em dia, preferiríamos sermos governados por Babu e Thelma do que por Jair Bolsonaro. Sabrina Fidalgo, preta retinta como a nova campeã do BBB, colaboradora de primeira hora do Quadro-negro, escreve como estes sinais convergiram, em um momento em que a branquitude, em crise, teme perder os privilégios que se constituem nas engrenagens que fazem funcionar tudo em nossa sociedade. Inclusive programas de TV.
Pretos protagonistas – Por Sabrina Fidalgo, cineasta
Babu, Thelma, Manu, Rafa. Nas últimas semanas o Brasil inteiro só faz repetir e comentar esses nomes comuns nas redes sociais (com exceção de Babu, uma abreviação de um odioso apelido racista que remete a “babuíno”).
Personagens da vigésima edição do reality show mais bem sucedido dos últimos tempos, o “Big Brother Brasil”. A bem da verdade, o formato do programa em sua ultimas edição já virava a curva da decadência e mostrava claros sinais de desgaste. Ibope baixo, desinteresse crescente do grande público, composição duvidosa e descuidada do elenco; tudo culminando com uma ganhadora que expressou atitudes racistas na casa durante a ultima edição do programa.
Eu mesma nem me lembro muito bem quando foi a ultima vez que acompanhei um BBB na minha vida. Nas minhas lembranças confusas alguns nomes aleatórios me vêm a mente como Gisele, Maria ou Dourado, mas confesso que eu mesma não sei precisar de qual edição participaram.
Me lembro que houve um momento no século passado em que intelectuais, gente do cinema e do teatro, decidiram olhar o reality show com mais “atenção” alegando que o BBB se tratava de uma espécie de laboratório cientifico da macro sociedade.
Mas o olhar era vertical, de baixo para cima, é claro. O fato é que o BBB é um fenômeno estritamente brasileiro, pois, apesar de seu formato existir em muitos países (o BBB canadense esse ano, inclusive, foi cancelado em sua reta final devido à crise do COVID-19 fazendo com que os participantes, aos prantos, deixassem o programa) em nenhum outro lugar ele foi tão levado a sério como no Brasil.
Na maioria dos lugares, o Big Brother é considerado um programa B, inculto, vulgar, vazio, cujo único público advém das camadas mais baixas da sociedade. E na maioria deles, o programa sequer é produzido mais. Mas no Brasil, país que sistematicamente não investe em educação e a TV é quem nos educa e nos forma, tudo é diferente.
Nessa edição, o BBB, que historicamente sempre foi composto por um elenco de maioria de pessoas brancas, tal qual a triste tradição de escalação de elenco da própria dramaturgia da emissora, não fugiu à regra. Dos 22 participantes, apenas dois negros (Thelma e Babu), uma mestiça (Flay) e um asiático (Pyong).
E foram justamente esses quatro “corpos estranhos” que tornaram a vigésima edição do reality mais interessante. O momento de pandemia global e o confinamento coletivo foram, também, ingredientes do estrondoso sucesso do BBB20. Junte-se a isso um combo explosivo de personagens polêmicos, como praticamente todo o elenco masculino.
Um grupo de mulheres que se uniu contra o machismo do elenco masculino. Ergueu-se a bandeira do feminismo (pero no mucho), que tremulou com o trio Rafa-Thelma-Manu na final. Ainda sim, Babu foi o grande protagonista dessa temporada, indo de encontro a todas as premissas de “fenômeno de sucesso” difundidas na própria emissora.
Babu Santana, 40 anos, carioca, cria do grupo teatral “Nós do Morro”, ator duplamente premiado com o troféu Grande Otelo no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, profissional de grande prestigio no cinema (entre outros, protagonizou “Tim Maia – O Filme”, de 2013, e atuou em mais de vinte produções como o premiado “Estômago” de 2007 ).
Babu fora, inclusive, o grande homenageado na 21ª edição da Mostra Tiradentes, um dos maiores festivais de cinema autoral do Brasil, tendo sua trajetória nas telas reverenciada por público e crítica. O que faz, então, um ator dessa envergadura, num programa popular como o BBB?
Depressão, desemprego e racismo.
Preto e gordo, Babu, que entrou em uma profunda depressão após a morte da mãe alguns anos atrás, engordou ainda mais e viu evaporarem os poucos privilégios conquistados na carreira.
No país que reproduz padrões coloniais ad eternum e não consegue adentrar o século XXI em questões de diversidade na mídia, Babu está no ultimo lugar da fila nas escolhas dos dramaturgos, atores e diretores. Ladrões, capatazes, bandidos e assassinos são apenas alguns dos papéis a que foi submetido, sobretudo na TV.
Nela, no reality show, Babu contou sua vida, chorou muito, pregou a palavra, militou e mitou, sim. Fez comentários homofóbicos e machistas também, se juntou com o grupo de homens “toscos” e varridos um a um rapidamente do programa e se aliou com Prior, o polêmico participante acusado formalmente de estupro por três vitimas aqui fora.
Ainda assim, Babu formou aliança empática com Thelma, a única participante negra retinta do programa, alegando jamais votar na única participante preta da casa (a exceção seria uma escolha entre ela e Prior). Thelma também lhe jurou lealdade, chegando a bater de frente com seu grupo a ponto de ser isolada. O cordão que os uniu foi o da negritude. E tal aliança dita com todas as letras e fez a sociedade brasileira em quarentena pensar. E muito.
O fato é que Babu se tornou o último homem da casa, o mais perseguido por quase todos os participantes que votaram nele (em especial Ivy, a modelo mineira cheia de vícios racistas e preconceituosos) e do lado de fora visto como o franco favorito do programa.
Até o momento em que os administradores de suas redes sociais colocaram tudo a perder em momento crucial da reta final ; chamaram Thelma de “mucama” em seu Twitter, parafraseando uma fala odiosa, na mesma rede social, da vice-presidente da Estação Primeira de Mangueira, mulher negra, que não perdoou a médica (assim como parte obtusa do movimento negro) por ter votado em Babu em um paredão.
Apesar do pedido de desculpas do administrador de seu Twitter ter sido postado quase que imediatamente após o imperdoável “deslize”, o estrago já havia sido feito. No paredão seguinte, o seu décimo, Babu saiu com 57% de votos deixando na casa apenas o trio vitorioso de amigas Thelma-Rafa-Manu. Nunca houve uma comoção tão grande com a saída de um participante do BBB como com a saída de Babu.
Alçado a categoria de “herói da resistência” e com uma das maiores popularidades do show-biz, certamente Babu agora terá tempo de reorganizar sua assessoria e dar a guinada rumo ao estrelato absoluto na carreira que ele merece ter, com direito a contratos e protagonismos à sua altura. Sem estereótipos.
Por outro lado, temos Thelma, a médica negra, empoderada, orgulhosa, consciente de seu papel, de suas conquistas e de seu lugar na sociedade. Ela, que nunca choramingou sua condição e tampouco jogou a carta da cor de sua pele no jogo da branquitude.
Filha adotiva, Thelma perdeu o pai e teve que lutar por 100% de bolsa integral na faculdade de medicina, numa era pré-cotas raciais, da qual foi a única negra durante todo o seu curso. Para se manter como médica anestesista, Thelma se divide entre quatro hospitais e não faltam em sua história episódios racistas no qual fora confundida com uma auxiliar ou enfermeira.
Ainda assim, Thelma é uma exímia bailarina, passista, e das boas, da escola de samba “Mocidade Alegre” de São Paulo. Auto-estima elevada, bonita, bem resolvida e olha para frente com firmeza.
Tudo aquilo que não se espera de uma mulher preta retinta brasileira.
Thelma foi a única mulher que se levantou, bateu de frente e falou mais alto com o participante mais musculoso e mais branco desta edição do BBB. Desde o inicio, ela se aliou à “Comunidade Hippie”, grupo comandado por mulheres, mas que tinha um homem, Pyong Lee, como líder. Todavia, em dado momento, Thelma foi relegada a segundo e terceiro planos por suas amigas brancas e “feministas”, até o ponto em que um participante do mesmo grupo, Daniel, lhe deu o “monstro”, espécie de castigo do programa. Isolada e triste, Thelma só foi amparada por outras duas participantes que também estavam “abandonadas” e flutuantes no jogo aquela altura; a digital influencer Rafa Kalimann e a cantora Manu Gavassi.
E foi nesse momento que deu-se inicio ao trio vitorioso que vimos na final. Todas as três tiveram mérito, todas são mulheres incríveis. Mas Thelma foi a única que mereceu ganhar um milhão e meio de reais num programa, que espelha uma sociedade, que sempre menosprezou mulheres como ela, que representam 56% da população e que formam a base da pirâmide de uma sociedade injusta.
Thelma foi a melhor jogadora dessa edição, ganhou duas provas do líder e foi a única participante inscrita que chegou até a final. Não se valeu de fama ou multidão de seguidores para conseguir votos. Ela contou com sua própria trajetória reta dentro do programa. Ela olhou pra frente com firmeza.
E quando uma mulher negra olha firme, o exemplo se firma.
Sabrina Fidalgo é cineasta e foi membro do Júri do 7º Brasília International Film Festival 2020