A vida e o medo da morte na tradição Yorubá
Colunistas são espécie de oráculos. Os lemos todas as semanas em busca de orientação intelectual. Da “esperança equilibrista” em tempos de desespero e luto. Mas, como notou Levi-Strauss, nossos intelectuais, apesar de viverem em um país de maioria descendentes de africanos e índios, são versados em pensadores europeus. Vivemos tempos de morte. No noticiário, heróis anônimos e célebres têm morrido por atacado. No Brasil, nosso presidente, como o Shinigami japonês, ou o Samael hebraico, se comporta como o próprio anjo da morte. Quem mais morre por conta da pandemia de Covid-19, que o presidente e seus cultistas querem espalhar pelo país furando quarentenas, é a população negra. Mas há Brasileiros interessados na formação intelectual não colonizada, e dela vêm reflexões que lembram toda a filosofia e religiões ocidentais porque elas foram também da mesma matriz. O baiano Zezé Ifatolá Olukemi é um destes jovens intelectuais versados no que deveríamos saber mais. Ele é um omo Ifá, teólogo, futuro oráculo de um saber que, apesar de mãe de todos os outros saberes, permanece para nós um mistério. Como a vida, o medo, e a morte, temas deste artigo escrito por ele para o Quadro-negro.
A vida e o medo da morte – por Zezé Ifatolá Olukemi
Super valorizamos o espaço-tempo em que vivemos no Àiyé. Essa vivência é fração pequena diante de algo maior: toda a nossa existência ancestral.
Se partirmos do princípio que constituímos uma dinâmica espiritual desde o início da criação do mundo onde acreditamos na atunwua (reencarnação), então podemos dizer que somos ancestrais de nós mesmos.
Isso nos faz conjugar o “verbo” ancestralidade no presente. Porém, quando desencarnarmos, e em outro momento retornamos, passa-se a conjugar esse “verbo” no futuro.
Ancestralidade é o futuro.
Os que seguem a espiritualidade de base Yorubá vivem a vida na terra procurando tornar-se ancestrais. Mas, desencarnarmos não nos garante ancestralidade. Para isso, é necessário ter condutas em vida que dignifiquem nosso espírito de ser, depois da passagem, admirado.
Quantas identidades e versões de nós mesmos giram em torno de um único espírito ancestral e das infinitas possibilidades de fortalecimento desse ao passar dos séculos, levando em consideração a preservação da memória de encarnação em encarnação. A memória ancestral.
Sim, a ancestralidade Yorubá é complexa e por isso mesmo existe uma série de divindades responsáveis por tratar dela nos mais variados âmbitos.
Super valorizamos esse momento terreno, porque temos pavor da morte. Porque confundimos o conceito de desencarnar com o conceito de morrer. Dois conceitos distintos. O medo de morrer nos afasta do que é necessário para nos conectarmos espiritualmente com o fluxo do nosso destino de forma positiva e leve.
Acredito que devemos ter as orientações espirituais como bússola no qual o objetivo é nosso ser tomar caminho de um bom destino, que não é estático, nem pré-definido, como deseduca-se no ocidente. O destino se molda conforme uma série de eventos, mas o alinhamento espiritual tem como finalidade estabelecer qual o destino escolhido por nós antes de reencarnar.
Em algumas dinâmicas espirituais de matriz africana, esse objetivo não fica tão explícito, porém se adota como prática rituais que positivam nossas vidas e automaticamente nos colocam no fluxo do bom destino sem necessariamente precisar descobrir qual escolhemos anteriormente. Acredito que esse é o passo mais importante.
A resposta prática das perguntas que resultas de outra perguntas.
Um dia nosso corpo servirá de oferenda para a grande mãe terra, afinal ela é a grande matéria prima utilizada pelo grande escultor Obatalá.
Acredito que ikú (a morte) pode vir até nós e isso de fato é negativo, pois a mesma vem como ajogún, como nossa inimiga, porém, quando vamos até ela, após termos cumprido o nosso destino com êxito no Àiyé, ela nos favorecerá servindo como uma espécie de portal onde faremos uma transição tranquila e sem sofrimento.
Que as relações que construirmos na Terra sejam boas para nos proporcionar um bom ritual de passagem e que aos nossos espíritos nos ofereçam cultos e assim nos tornemos eternos no Àiyé, assim como somos no ẹgbẹ ọrùn, na sociedade espiritual.
Tenham todos e todas uma boa semana de culto a Ifá, e ku ọ̀sẹ̀ Ifá!
Ire o!
Zezé Ifatolá Olukemi, 38, é omọ Ifá.