O Brasil precisa é de uma mãe de santo
Vitória.
Mãe Vitória.
Cheguei a seu terreiro, em Ilhéus, pálido. Era uma tarde quente de maio de 1994. Mal conseguia andar.
Vinha da Zona Sul do Rio de Janeiro. Havia passado pelos melhores hospitais que o melhor plano de saúde pode pagar.
Fiz todos os exames clínicos. Sistema circulatório, ok. Nervos, de aço. Coração, fígado, glicose, hormônios. Tudo certo.
Havia perdido quatro amigos que não haviam chegado aos 30 anos. Todos haviam cometido suicídio em um espaço de dois meses.
Regina jogou-se do oitavo andar. Marcos, na linha do trem. Adriano enforcou-se em seu quarto.
Kurt Cobain, jovem compositor, guitarrista e vocalista da banda Nirvana, heroína e tiro na cabeça.
Estava todo mundo desistindo.
De Regina, guardei um vestido de quando moramos juntos e vivemos um grande amor juvenil. De marcos, o jogo de botão de seu time, o Flamengo. De Adriano, um chaveiro de Star Wars. De Kurt, uma fita de vídeo com a conversa que tivemos sobre o peso do mundo, no dia do show do Nirvana na Praça da Apoteose, Rio de Janeiro.
Psicólogos e psiquiatras e remédios para a o cérebro não poderiam oferecer alívio a curto prazo.
Todos diziam que meu sistema imunológico estava em colapso. Muito em breve eu deveria ser internado e morreria de uma doença qualquer porque nesse estado nem a alopatia mais avançada ajuda.
Eu também estava desistindo.
Já havia, naquela altura da vida, lido quase 4 mil das mais de 10 mil páginas das memórias de Saint-Simon, o duque, não o conde.
Inferno, de Strindberg, era meu livro de cabeceira.
E, claro, A queda da casa de Usher, de Poe. O conto, uma aula sobre minha própria e provavelmente incurável ansiedade, hipocondria e, principalmente, hiperestesia.
Mas, na verdade, eu não sabia era de nada.
Não havia lido Tutuola. Não havia lido Toni Morrison. Não havia lido Conceição Evaristo.
Nunca havia ouvido falar em Eweká. Não sabia uma palavra em dagbâni. Não sabia nada sobre os Bijagós.
E foi assim que cheguei ao terreiro de dona Vitória, em Ilhéus.
Na época em que não sabia que terreiros eram unidades civilizatórias de pertencimento ancestrálico.
Mãe Vitória tinha longos cabelos crespos de prata. Idade. Passava a tarde tendo o cabelo penteado por suas filhas.
Debaixo do meu cabelo, tem minha cabeça.
Calmamente, ela fechou diagnóstico sobre mim, a beira da morte. Eu estava longe de mim, dizia ela. Estava longe do meu Ilê, dizia ela. O lugar de onde vem minha força. Eu estava longe de casa.
Desontologizado.
Então antes de fazer minha cabeça embaixo do meu cabelo, Vitória fez a minha cabeça por baixo da minha cabeça. Me deu Tutuola pra ler. Me ensinou poemas em dagbâni, leu trechos de Conceição Evaristo.
Me reontologizou.
Me fez voltar pra casa.
Que também atende pelo nome de Bahia.
Também conhecida pelo nome Mãe.
Havia levado para Bahia os objetos dos meus amigos que haviam cometido suicídio nos últimos meses. Naquele momento eu já entendia que eles sofreram do mesmo mal que eu.
Não suportaram tanta distância de si próprio.
A distância de seu Ilê.
Todo mundo tem seu Ilê. O lugar conceitual de onde se tira a sua força e o seu sentido.
Não suportaram tanta overdose de não ser quem se é.
Essa coisa que o ocidente faz com a gente.
Enterrei os objetos de meus amigos, o vestido de Regina, o time de futebol de botão de Marcos, o chaveiro de Adriano, a fita de vídeo de Kurt Cobain, nos fundos do terreiro.
Todos tiveram mães.
Mas não tiveram mães de santo.
O Brasil me parece hoje passar pelo mesmo problema que nós cinco passamos.
Longe de si próprio.
Longe de casa.
Desontologizado.
Longe da Bahia.
Longe de seu povo, que é ao mesmo tempo seu chão os pés que aqui fincaram nação e valor.
O povo brasileiro não é essa minoria suicida, pálida mas bem alimentada, bancada por empresários, defensora da tortura e da ditadura militar, possuída por energia ruim, que se apropriou das cores da nossa bandeira e fez fama na internet. Que cultua pai/pátria ao invés de mãe.
O país parece prestes a pular do oitavo andar, de se enforcar no quarto, de se jogar de uma linha de trem, se injetar de heroína e colocar uma bala na cabeça.
O problema de nosso presidente, e principalmente, dos admiradores de nosso presidente, é que eles têm mãe, mas não têm mãe de santo.
Ontolologia, casa, significado, pertencimento, reencontro, Bahia.
Tudo isso é mãe feliz.
Tudo isso é feliz dia das mães.
Que hoje seja um dia sem derrotas.
Que pelo menos hoje, seja, enfim, um dia de vitória.
Uma vitória mãe.
Dodô Azevedo é editor do Quadro-negro e na Bahia filho feito em Oxalá.