Making of de Bacurau já é um dos melhores filmes de 2020

Uma das tragédias do fim da mídia física que se avisa é a perda dos extras que vêm com ela. São comentários do diretor, cenas deletadas, conversas com técnicos e elenco etc.

Além da possibilidade de um espectador ser arrebatado, resolver até seguir profissão, ao se encantar com uma entrevista de alguém que que trabalhou no filme como figurinista, direção de arte, ou roteiro, há nas faixas de comentário, que são, na prática, aulas de cinema que valem por um semestre inteiro em Universidade.

Coppola, comentando a trilogia “O Poderoso Chefão” nos DVDs à venda no mercado, não é só aula: é um estímulo para qualquer iniciante que encontre dificuldades para fazer um primeiro filme grande. O então jovem Francis Ford comeu o pão que o diabo amassou e deu a volta por cima. Na faixa alternativa de áudio do DVD, conta cada perrengue que passou para filmar cada cena. Ficamos sem acreditar como o primeiro “O Poderoso Chefão” não só conseguiu terminar as filmagens, mas ser realizado como o filmaço que é. Os bastidores narrados por Coppola ensinam não só sobre o fazer cinema, mas muito sobre a indústria de Hollywood. Algo precioso que só trabalhando lá se aprenderia.

Há até um site americano, o delicioso “Film School Rejects”, dedicado compilar os ensinamentos dos comentários de cada lançamento em DVD e e Blu-Ray (infelizmente cada vez mais escassos).

No “Film School Rejects” há, por exemplo, a transcrição dos comentários do roteirista e diretor Ryan Johnson soltando o verbo no blu-ray de “Star Wars – O Último Jedi”. Verbo fundamental para entender essa nova relação entre fãs e indústria, e como eles hoje mandam e pautam o conteúdo dos blockbusters (de toda a arte pop mainstream, na verdade).

O longo Making Of de “Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee, mostra como o fazer cinema pode modificar para melhor a comunidade onde o filme foi filmado. De como dar em troca, ao local, uma contrapartida social, ao contrário do que foi feito em “Cidade de Deus” e nos “Tropa de Elite”, que foram às comunidades apenas tomar. Não trocar.

David Lynch, nos comentários do Blu-Ray espanhol de seu “A estrada perdida”, mais indecifrável filme que fez na vida, soluciona o mistério. Revela que fez o filme pensando no caso O.J. Simpson: “O filme nada mais é do que o caso de mais um marido feminicida que acha que está tão certo no que fez que monta na cabeça dele um delírio onde ele é vítima. Um tormento. Uma estrada perdida.” Pronto, fim do mistério.

E há os filmes da última fase de Agnes Varda, praticamente filmes dela comentados pela própria. Uma realizadora que transformou em obra um recurso que a tecnologia do DVD sugeriu.

Kleber Mendonça Filho, nos comentários do DVD de O Som ao Redor, dá uma aula completa de de Cinema, do som ao produto final da imagem. No Blu-ray de Aquarius, quem dá o show é Sônia Braga, pela primeira vez na vida comentando um filme seu e revelando que sabe muito mais de cinema do que os críticos de cinema que conheço.

Imaginem, num relançamento de filmes remasterizados, Sônia Braga, mulher que não teve voz nos anos 70 e 80, porque no cinema atrizes não tinham voz até ontem, comentando todos os seus filmes hoje em dia?

O que nos traz a “Bacurau no Mapa”, um documentário na verdade fantasiado de making of. Primeiro, porque é dirigido pelo próprio diretor, coisa raríssima em making ofs. Segundo, porque Kleber é também um documentarista atento, como vimos em “Crítico”, de 2008. E aqui, não perde a oportunidade de executar uma obra.

O making of “Bacurau no Mapa” desvela: peões e artistas são iguais. Não podem ver oportunidade de executar uma obra que já arregaçam as mangas e constroem o melhor do Brasil, sabendo serem definitivos, enquanto governos são provisórios.

Segundo, porque trata-se de um filme sobre a feitura de um filme nunca visto antes no Brasil. Making ofs geralmente obedecem um estrutura dramatúrgica manjada. Os conflitos de roteiro são sempre os mesmos. “Quantas dificuldades para fazer esse filme! Será que o filme conseguirá ser finalizado? E quando lançado, obterá sucesso?”

Kleber foge dos três. Um milagre. Não se faz de coitado. Sabe que é tão difícil fazer cinema no Brasil, que escolhe o recorte da celebração por estar trabalhando. E trabalhando no Nordeste Brasileiro. E trabalhando com equipe de fora do eixo rio São Paulo. E trabalhando com o a história o o roteiro que ele e Juliano Dornelles escolheram.

A mensagem é: trabalhador de audiovisual trabalha muito, gera muito dinheiro para o país, e ama muito o que faz.

Em “Bacurau no Mapa”, foge-se também do “Será que o filme conseguirá ser finalizado?”. Nada disso. Terminar o filme não é a única vitória de uma equipe. Fazer o filme é uma vitória maior. Então não vemos no final do documentário o sucesso do filme em Cannes, sendo premiado. Ainda mais importante que prêmios é estar no set, diz o documentário.

E, por fim, o filme de Kleber resolve fazer uma coisa que making of nenhum faz. Contar, generosamente, como se faz cinema. Do que é feito uma cena. E isso é feito como se o espectador fosse morador de Bacurau. Quando, nos estúdios de pós-produção e mixagem na França é discutido sobre qual barulho de tiro usar em uma cena, vemos que 1) As decisões da equipe são tomadas em conjunto, ouvindo os responsáveis, de uma forma horizontal como funciona no próprio povoado de Bacurau. 2) Como fala Kleber na cena do documentário, não é a fidelidade do som à arma usada que importa, e sim a sensação que o som irá passar ao público como narrativa. Ouro puro para estudantes de Cinema.

Em Bacurau no Mapa, vemos muitas cenas do convívio coletivo da equipe. Seja ensaiando e gravando uma canção cantada em coro, seja se divertindo dançando forró. A força do coletivo, uma das maiores mensagens de “Bacurau”, também é a mensagem aqui.

Outra mensagem comovente e, porque não, histórica, é o registro da quantidade de negros e mulheres competentes botando a mão na massa. Uma comunidade diversa que não se vê, que costuma ser invisibilizada está ali, empregada, trabalhando e gerando dinheiro para o país.

Se “Bacurau” é a história de uma comunidade, “Bacurau no mapa” é a história da comunidade que se forma para produzir um produto audiovisual. E os dois são sobre a necessidade e vantagem de agir de forma comunitária.

E há Udo Kier (e seus processos como ator) devidamente registrado. Impressionante saber que nem Fassibinder, nem Lars Von Trier, que tiveram em Udo parceiro inestimável, se interessaram antes em registrar para a posteridade o incrível profissional das artes dramáticas que Udo Kier é.

E há Udo Kier com Sônia Braga, o making of da cena já antológica do encontro entre os personagens que fazem. Encontro que é espécie síntese da História do Brasil, de refilmagem do encontro de Pedro Álvares Cabral com o primeiro líder Indígena, em 1500. A estratégia bolada pelos diretores para que o impacto do primeiro encontro fosse verdadeiro é orgânica e outro ensinamento de ouro para estudantes de cinema.

Mas, claro, “Bacurau no mapa” não é só para estudantes de cinema. Longe disso. O documentário de Kleber diz que não é preciso o espectador saber intelectualmente de nada. O que se quer, o que “Bacurau no mapa” quer, é que espectador saiba sentir.

Que só sabendo sentir se reaparece no mapa.