Por que os negros brasileiros não se revoltam como os americanos?

Se você quer uma resposta simples, procure na pergunta. Brasileiro é brasileiro, americano é americano.

Mas acontece que negros de outros países também têm reagido às violências impostas a seu povo. Dos subúrbios de Paris ao bairro de Soweto, do hemisfério norte ao hemisfério sul, negros têm reagido.

Veja bem, a palavra violência ainda não entrou aqui.

Porque o mistério não é nem saber o motivo pelo qual os negros do Rio de Janeiro, por exemplo, não incendiaram a cidade inteira quando foi assassinada a menina Agatha, em setembro do ano passado.

O mistério não é saber porque os negros não reagiram de forma violenta.

O verdadeiro mistério é saber porque os negros sequer reagiram.

Voltemos à frase “acontece que negros de outros países também têm reagido às violências impostas a seu povo”. Taí. Mistério resolvido.

“Seu povo”.

O negro brasileiro é um negro único no mundo porque não se vê como um povo.

Não foi educado para se ver como um povo.

Não é educado para se ver como um povo.

O negro brasileiro foi programado para sequer se ver como negro.

Em 1835, na Bahia, os negros escravos islamitas planejaram um levante, a “Revolta dos Malês”. Tomar a capital Salvador matando quem estivesse na frente.

Educação. Como o judaísmo, o islamismo é uma fonte de educação fundamental (civilizou a Europa) e, principalmente, ensina um povo a se ver como um povo.

O negro brasileiro foi educado para cair no conto do vigário, na versão criada pela elite de que somos “um povo feito por muitos povos”.

Quem se alinha a esse estelionato demográfico, quem pensa que somos mesmo “um povo feito por muitos povos” são os brasileiros que pertecem às classes e raças privilegiadas.

O truque de convencer negros brasileiros de que somos uma grande e bela família diversa, tupis, cafuzos, loiros, negros. E, por isso, ninguém é tupi, nem cafuzo, nem loiro, nem negro. Somos a soma. Logo, negro, no Brasil, posto que aqui tentam nos conhecer de que não há raças, e sim amálgamas, não encontra nem a categoria “negro” para se ver.

E não se vendo, some.

Se em Londres a polícia assassinar uma menina Síria, a comunidade Síria, que se vê como povo, irá botar pra quebrar. Se uma menina rohingyas é estuprada num beco de Cox’s Bazar, na fronteira de Mianmar com Bangladesh, o povo rohingyas irá botar pra quebrar.

No Brasil, se uma menina da etnia negra é baleada nas costas o que vemos são dois meses de noticiários e hashtags.

O truque da deseducação do negro para não se entender como negro e, por consequência, não se entender como povo, como acontece com rohingyas, sírios, judeus e muçulmanos é tão perverso no Brasil que nossa identificação como povo se dá por vias de mercado.

Dispositivos que nos filiam, servindo de cortina de fumaça para vermos a que povo de fato pertencemos.

Exemplo 1 : Se um palmeirense é atacado por corintianos em uma estação de metro, “o povo corintiano” irá jurar vingança. Provavelmente, no confronto, vai gente preta matar gente preta.

Exemplo 2: Se um bandido de uma facção X for assassinado por outro, da facção Y,  durante a tomada de uma boca de fumo, “O povo da facção X”, jurará vingança. E unidos, provavelmente veremos mais negros matando negros.

Fora do Brasil, negros são educados, desde criança, a se verem como negros. E todos os movimentos negros norte-americanos que partiram para o confronto, como os Panteras Negras, não o fizeram sem antes muitos estudar, ler livros sobre o assunto, produzir intelectuais robustos que os fizessem escapar da armadilha da “educação ocidental”.

O livro norte-americano “The Miseducation of the Negro”,  “A deseducação do negro”, de Carter Woodson, escrito em 1933, é um dos faróis que não tivemos aqui. Apesar de aqui dançarmos até hoje as músicas do álbum “The Miseducation of Lauryn Hill”, onde a cantora fez questão de, na famosa capa do disco, ter imitado o design da capa do livro de 1933.

Seria como se o primeiro disco de Anita trouxesse na capa o geógrafo brasileiro negro Milton Santos.

Mas Anitta não tem culpa de nada. Ela, e você, não leram a fundamental obra de Carter Woodson. E ainda vêm dando sinais de despertar político. Não tem culpa. Nem ela, nem nenhum outro negro que não sabe que é negro, ou que não queria saber que é negro porque é algo que no Brasil dá trabalho, ou não se vê como parte de um povo que é antagonizado e excluído o tempo inteiro pelas etnias que detém o poder no país.

Nós negros brasileiros, fomos todos educados longe de nossa própria cultura e tradição e ligados às franjas da cultura do povo branco.

Todos os povos são lindos. Os brancos, os sírios, os rhohingyas, os judeus. Lindos todos. E todos se vêem cada um como um povo distinto. E não há pecado algum nisso.

Pelo contrário, ver-se como povo é a coisa mais linda que pode acontecer a um.

Como foi publicado aqui, na coluna de ontem, o que o povo preto quer não é nada que não seja dado a todos os outros.

O direito de respirar.

E, no caso do povo preto brasileiro, o direito de ver.

De se ver.

A DESEDUCAÇÃO DO NEGRO

  • Preço R$ 40 (180 págs.)
  • Autor Carter G. Woodson
  • Editora Medu Neter