E o tempo levou ‘E o vento levou’
Precisamos entender que a história do cinema ainda está em seu início.
Há pouco mais de 100 anos, a chamada 7a arte foi inventada.
A pintura, por exemplo, tem 44 mil anos de idade. E contando. Porque quanto mais o tempo passa, mais arqueólogos encontram pinturas ainda mais antigas em cavernas pelo mundo.
“E o vento levou” é um filme das cavernas. Será reconhecido, quando o cinema tiver 44 mil anos de idade, como as pinturas nas paredes das cavernas Sulawesi, na Indonésia.
A arte das cavernas são, muitas vezes, chocantes. Mostram que já vivemos de modo brutal, que já fizemos sacrifícios humanos a deidades, que já praticamos estupros coletivos, já fomos canibais.
São valiosas por isso, para mostrar o quanto melhoramos como humanidade.
“E o vento levou” não é apenas um filme que reforça o racismo, ou a ideia de que uma raça, a negra, é inferior à branca. Não apenas glorifica e humaniza personagens que eram donos de escravos, que os submetiam a toda sorte de torturas e desumanidades. É, também, misógino.
Se Scarlett O’hara é uma personagem irresistível em sua profundidade, que por muito tempo foi exemplo de resiliência feminina, também a vemos se estuprada pelo marido, o herói Rhett Butler, interpretado pelo galã Clark Gable, e no dia seguinte finalmente acordar de bom humor, apaixonada.
A famosa cena da escadaria de veludo vermelho, onde tudo, das cores às texturas escolhidas, glorificam o estupro. Pior, colocam o estupro entre casais como terapia e solução para relacionamentos entre marido e mulher.
O filme nos manipula. Nos faz vibrar: “Agora vai! Isso, Rhett, pegue essa garota indomável à força! É isso que ela no fundo quer!”. E ao vermos, na cena seguinte, ela sorrindo: “Não disse? O que ela tava precisando era de uma boa surra! Mulher é assim!” – O galã Clark Gable seria, na vida real, décadas depois, acusado de ter estuprado atrizes de Hollywood na época em que “E o vento levou” foi produzido.
Pedro Almodóvar disse que a cena da escadaria de veludo vermelho de “E o vento levou” é a mais erótica da história do cinema. E uma de suas preferidas.
Muitos filmes de Almodóvar também irão, em breve, para a arqueologia do cancelamento. No filme “Fale com ela”, de 2002, o espanhol nos fez achar belo e poético o estupro de uma mulher em coma. Antes, em 1993, nos fez rir por 15 minutos de um longo estupro da personagem título de seu filme “Kika”.
Desapeguem de seus ídolos. Estamos ainda no início da história do cinema. Em breve, serão revistos, revisados, e defenestrados, exatamente como fizemos quando, milhares de anos atrás, decidimos que o canibalismo não era uma coisa decente.
Em “E o vento levou”, negros são retratados como pessoas doces. E aí está sua maior perversão. Os cidadãos que viram ao vivo, no meio da rua, George Floyd ser esganado por um policial até a morte em plena luz do dia, o fizeram porque o único negro digno, no imaginário do branco, do benefício da dúvida, é o negro doce.
Um negro sendo abordado por policiais e reclamando disso, não sendo doce a isso, é um negro suspeito, diz nosso imaginário.
Imaginário esse criado por filmes como “E o vento levou”.
Assim como deixamos de ser canibais, filmes como esse não serão mais feitos. Ou se forem, encontrarão agora uma sociedade desperta, pronta para confrontá-lo.
E é assim que o mundo melhora.
O serviço de streaming HBOMax, que retirou o filme de seu catálogo após protestos, deveria voltar com ele, só que desta vez acompanhado de, por exemplo, um documentário. Um programa que ouça negros à respeito do filme.
Que restabeleça as condições, por exemplo, do ultrajante mas comemorado Oscar para a a maravilhosa atriz negra e lésbica Hattie McDaniel. No papel de uma empregada doméstica. Mas não porque a atriz fora escalada por ter o potencial para interpretar bem uma empregada doméstica. Mas porque havia, na época, o “Código Hays”, mais uma dessas aberrações típicas do livre mercado (essa designação hipócrita), um sistema de autorregulação dos estúdios para “restabelecer a boa imagem de Hollywood”, após a enxurrada de escândalos dos anos vinte. O “Código Hays” proibia romances interraciais e obrigava negros a interpretarem apenas empregados domésticos e motoristas.
À respeito, a oscarizada Hattie McDaniel, saiu-se com esta frase de rasgar o coração: “Prefiro interpretar uma criada por 700 dólares a ser uma por 7.”
Ainda assim, “E o vento levou” não merece censura. O filme deve permanecer como exemplo. Mas, acompanhado de material científico. Como nas pinturas rupestres exibidas em museus, onde guias treinados explicam que aquilo é a prova viva de que melhoramos como seres humanos.
Porque é isso que “E o vento levou” é, e será lembrado: Como a prova de que melhoramos como seres humanos.