Em live antológica de aniversário, Gilberto Gil nos relembra que Sertão não é sertanejo universitário
Dos movimentos mais antigos humanos na Terra, está pedir-se ajuda à gente preta de cabeça branca.
Na África, onde começou nossa aventura neste planeta, cultivava-se, como até hoje, o hábito de ter em pessoas idosas referências para a cura de todo o mal. Fosse do corpo ou do espírito.
Nossa primeira ciência.
Gilberto Gil completa 78 anos de idade.
E o Brasil está doente.
Do corpo e do espírito.
Para comemorar, juntou sua banda “junina”, sua família, um patrocinador, e fez uma live.
“Fé na festa” – O título do evento.
Outra coisa que os primeiros humanos faziam para espantar o mal era reunir a tribo e fazer uma festa.
E o Brasil está mal.
Do corpo e do espírito.
O corpo e o espírito de um país, qualquer país, qualquer nação, são forjados em seu sertão.
O sertão brasileiro foi, nos últimos cinco anos, sequestrado.
O sertanejo universitário o levou para casas de luxo em São Paulo e Goiás, misturou-o com uísque, energéticos e carros de grife com ar-condicionado.
O sertão foi sequestrado por brasileiros que nunca tomaram sol, que nunca passaram fome. Por gente que não anda com gente preta.
Até que Gil, preto, em seu aniversário, veio resgatar ele, o Sertão, substantivo próprio.
Propriedade extraviada.
Até que Gil, preto, em seu aniversário, veio nos fazer lembrar o que é de fato o Sertão.
Nos fazer lembrar de nós.
Nesta época do ano, o Brasil que, invisível, move o Brasil, entra em festa. São as noites juninas.
O Brasil visível que nada constrói, o de bancos de investimento e camarotes vips, se encolhe de frio.
Porque está no sul.
O Brasil do sul.
O Brasil que tem andado mal e doente.
Então Gilberto Gil, preto de cabeça branca, fez nesta noite o que faz há mais de década, uma festa sertaneja de São João. Além do repertório, parava o tempo inteiro para lembrar dos nomes dos músicos e compositores que fizeram história no gênero.
Os sertanejos que formaram nosso espírito.
Por uma hora, o tempo do show, pudemos estar em contato com nossa saúde.
Por uma hora, nosso corpo e espírito puderam descansar no melhor de nós mesmos.
Por uma hora, pudemos acessar nossa ancestralidade.
O Sertão em nós.
Gilberto Gil fez aniversário. Fez festa. Fez fé.
Mas o que fez mesmo foi o que os primeiros humanos pretos de cabeça branca na Terra faziam.
Nos acudiu.