Estreia canal de TV brasileiro com 24h de conteúdo afro-urbano
“O negro só terá autonomia sobre sua própria história quando for proprietário de editora de livros, jornais e canais de TV”, a frase de Malcom X, dita nos anos 60 nos EUA, expõe uma realidade brasileira. Grande Otelo, em 70 anos carreira, não disse uma palavra escrita por algum roterista negro e ou negra. Agora, chega à TV aberta, o canal “Trace Brazuca”, Claro/NET (canal 624) e Vivo (canal 630), com 24h de programação dedicada ao universo Afro-urbano. Na posição de chefia de programação do canal, Kenia Sade escreve sobre a experiência ao Quadro-negro.
A chegada de um canal afrourbano no Brasil e os impactos da representatividade negra na mídia – Por Kenya Sade
“A história será escrita em primeira pessoa”. Lélia Gonzalez, antropóloga, filósofa, escritora e feminista, já havia nos alertado sobre as problemáticas de contarmos a história por apenas uma perspectiva, visto que, durante muitos anos, a invisibilidade negra nos meios de comunicação e mídia, causada pelo apagamento histórico, não permitiu que nós, pessoas negras, pudéssemos nos enxergar, nos ver representadas de forma positiva.
Quantas vezes pensei o quão significativo seria se filmes, documentários, novelas e programas na televisão representassem, de forma verossímil, a nossa realidade. E este sonho de um canal de TV a cabo segmentado para pessoas afro-brasileiras não é novidade. Foram anos de tentativas e muitas conversas para que esse objetivo fosse alcançado, já que, há décadas, vozes negras no Brasil trazem a retórica da importância de contarmos nossas trajetórias em primeira pessoa.
A subjetividade negra foi construída socialmente por imagens que nos colocavam em situação de subalternidade e subserviência. Desse modo, construções de narrativas positivas, como forma de contrapor essa visão estereotipada, são cruciais, sobretudo, para mudar a mentalidade da sociedade. Vivemos atualmente o momento histórico de revisão dos lugares no Brasil.
A grande novidade é que, pela primeira vez, teremos um canal a cabo de cultura afro- brasileira no Brasil, que não só é um sonho meu, como uma conquista de todas as pessoas que vieram antes de mim e abriram os caminhos para que esse sonho pudesse se tornar realidade. Assim, como a BET (Black Entertainment Television) se tornou no final dos anos 70 o primeiro canal voltado a esse público, e trouxe um novo olhar sobre os negros naquele país, o Trace Brazuca é a realização de um projeto coletivo, que chega em data simbólica.
Este marco na história da TV brasileira acontece no dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana – no Brasil, dedicado à memória de Tereza de Benguela, líder do Quilombo Quariterê, no século XVIII -, no qual a mulher e o homem negro possam se ver em todos os lugares, em plena potência. O Trace Brazuca tem a missão de entreter e conectar novas gerações, por meio do maior ecossistema afrourbano do mundo. Entretanto, um canal só na TV a cabo está longe de poder resolver todas as questões de representatividade que nos atravessam.
Apesar de representarmos quase 56% da população, ainda não temos espaço na mídia, publicidade e no mercado de trabalho como gostaríamos. A pesquisa Diversidade de gênero e raça, divulgada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), expõe as desigualdades que ainda existem dentro do cenário audiovisual brasileiro.
As mulheres representam 40% do elenco, já os negros, apenas 13,3%. Em 75,3% dos filmes nacionais, os negros são, no máximo, 20% do elenco. Em relação às mulheres negras é ainda mais excludente: ficam de fora de diversas categorias. Elas não aparecem nem como diretoras, nem como roteiristas.
Sim, é verdade que a representatividade importa e tem sido assimilada por negros e não-negros que compreendem o quão importante e transformador é a diversidade. Estamos conquistando cada vez mais espaços de poder. No entanto, não podemos falar em representatividade sem colocar em foco o conceito de proporcionalidade: queremos nos ver em todos os espaços e aos montes. Afinal, quando eu me vejo representada, eu consumo o conteúdo, a marca. A potência do consumo negro traz milhões à economia brasileira – anualmente, a população movimenta 1,6 trilhão de reais.
Sendo assim, o Trace Brazuca chega ao Brasil em um momento importantíssimo, no qual os acontecimentos globais, com a morte de George Floyd, jogaram luz às pautas da luta antirracista. No Brasil, o movimento está sob #vidasnegrasimportam. Neste mês, vimos reportagens e capas de revistas de circulação nacional de diferentes segmentos estampando os rostos de personalidades, como Yuri Marçal, Djamila Ribeiro, Teresa Cristina, Rene Silva, Orochi e Thelma Assis. Isso só reforça a importância e a relevância da representatividade e dos impactos positivos que esse avanço no pensamento, tem feito no país.
A chegada da Trace é fruto do encontro de Olivier Laouchez, CEO global, com José Papa, ex-CEO do Cannes Lions, líder da operação no Brasil. O grupo multimídia global francês, presente em mais de 120 países, tem forte difusão na África subsaariana e já tem uma grande aceitação do público brasileiro com o programa na TV aberta: Trace Trends. Conteúdo multiplataforma, que vai ao ar todas às terças-feiras, apresentado pelo Head de Marketing e um dos principais influenciadores da luta anti-racismo estrutural AD Júnior e roteirizado, dirigido e apresentado pelo jornalista e ator Alberto Pereira Júnior.
Na Trace Brazuca serão 24 horas de programação dedicada à música de todos os gêneros, documentários de grandes nomes do cinema nacional, como Sabrina Fidalgo, além dos conteúdos do programa “Trace Trends”, entre outros.
Eu, Kenya Sade, comunicadora, mulher e negra fico contente de poder contribuir para a construção de um canal em que teremos a possibilidade de contar uma narrativa potente. Não é para falar sobre dor, é um local para falar de alegrias, conquistas e vitórias. Somos múltiplos, plurais, existimos em muitas esferas e não queremos só falar de racismo. A Trace é um espaço para existirmos em excelência! A construção de novas narrativas traz outras possibilidades de existência.
Pelo direito de existir.
Kenia Sade é chefe de programação do canal Trace Brazuca
Confira alguns dos destaques da programação do canal:
SKIP SKIP
É o programa editorial da Trace de entrevistas exclusivas com os artistas mais importantes
da cena musical. O propósito é entreter e fazer perguntas provocativas ao artista, caso ele
não queira responder é só dizer: Assim, escapa daquela pergunta e segue para a
próxima.
DJOUBA
A playlist dos maiores hits africanos do momento.
TRACE+
Seleção dos melhores documentários produzidos pela Trace, como:História do Papa
Wemba que retrata a trajetória do icônico, pioneiro e intergeracional artista. Afrobeats, da
Nigéria para o mundo, um documentário musical que conta como esse gênero musical
influenciou artistas do mundo todo, entre outros
TRACE TRENDS
Programa de tendências, entretenimento e cultura urbana.
TRACE – SUA VOZ
O programa em formato de pílulas de 1 minuto traz mensagens de representantes da
sociedade civil e de organizações sociais sobre um tema específico.
GOSPEL VIBES
O Trace Brazuca dedica duas horas da programação ao melhor do universo Gospel