De professor para professora: Carta de Rodrigo França a Lilia Schwarcz

O mundo também melhora. 35 anos atrás, Paulo Francis publicava na Folha artigo em que chamava a escritora negra, prêmio Nobel de Literatura em 1993, de “um embuste que se aproveita da própria cor da pele”, sem questionamento algum dos leitores. Alguns poucos anos atrás, a leitura do texto da antropóloga e professora Lilia Schwarcz, publicado ontem pela Folha, sobre “Black is King”, filme-álbum afrofuturista lançado pela americana Beyoncé, também não suscitaria reflexões à respeito do caráter eurocentrista, e por isso limitado, falho, do trabalho de historiadores a respeito de histórias de povos que não advém da Europa. Mas o barulho foi feito.

Com otimismo, em um futuro próximo, ou os historiadores eurocêntricos passam a estudar e educar-se em perspectivas decoloniais, ou historiadores já descolonizados assumirão a tarefa de contar suas próprias histórias. Historiador indígena contanto a história do povo indígena. Historiador negro contando história do povo negro. Se o acadêmico eurocêntrico quiser adaptar-se aos tempos que virão, terão suas obras tornadas obsoletas. O professor eurocêntrico, se quiser continuar especialista no que não é europeu, terá que estudar. Ou trocar com professores já prontos para este mundo que, apesar de tudo, também melhora. Rodrigo França é um deles.

Exclusivo para o Quadro-negro, procura estabelecer diálogo, escrevendo uma carta sincera e útil a professora Lilia. Para evoluir em um mundo que também está em evolução, é necessária troca.

 

Carta de um professor para uma professora – Por Rodrigo França, professor

Como é preciso racializar todas as questões no Brasil, para que possamos fazer uma leitura honesta, corrijo para “carta de um professor negro para uma professora branca”. Mesmo a senhora sendo mulher, o homem negro ainda está alguns patamares abaixo quando se trata de desigualdade socioeconômica.

Antes de tudo, eu li todo o artigo da senhora. Ao verificar as repostas após cada crítica, fiquei surpreso que ainda exista o posicionamento de uma professora que questiona, a cada uma delas, se a leitura foi completa ou se a análise é realizada simplesmente pelo título. O Brasil onde negras e negros são analfabetos ou analfabetos funcionais está diminuindo, justamente devido à criação de políticas afirmativas como as cotas, contra as quais a senhora se posicionou publicamente, mesmo o seu objeto de pesquisa sendo “Escravidão”.

A senhora, mais uma vez, pediu desculpas por algo tão criminoso em um Estado Democrático de Direito, no qual a liberdade e a igualdade jurídica se estabelecem como alicerces –-e quando se trata dos povos indígena e negro, sempre estivemos em uma necessidade urgente de reparação. Ainda assim, a carreira da senhora continuou intacta; entretanto, se fosse uma mulher negra intelectual interferindo em uma construção jurídica que atingisse um determinado grupo excluído, esta mesma mulher negra intelectual não seria mais referência no seu objeto de estudo, não escreveria nos principais jornais e não seria mais titular como docente nas mais prestigiadas universidades do país. Sim, para nós não há segunda chance. Vamos usar um termo contemporâneo: para vocês, brancas e brancos, não há cancelamentos.

Quando eu leio no texto da senhora o excerto “Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”, penso: o que a senhora faz em relação a uma luta antirracista? Em 2020, a Academia continua negando centenas de intelectuais pretas e pretos, colocando a senhora como referência em escravidão. E não é por falta de talentos em um país com Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Maria Beatriz Nascimento, Azoilda Trindade, Luiza Bairros, Conceição Evaristo, Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de Iemanjá), Giovana Xavier, Flavia Oliveira, Elisa Lucinda, Djamila Ribeiro, Erica Malunguinho, Enedina Alves, Simone Maia Evaristo, Anita Canavarro, Katiúscia Ribeiro, Aza Njeri, Deborah Medeiros, Eliana Alvez Cruz, Carmem Luz, Maira Azevedo, Vanda Ferreira, Maria de Sá, Maria Júlia Ferreira, Vila Piedade, Anielle Franco, Valéria Monã, Lugana Olaiá, Val Benvindo, Luana Xavier e muitas outras.  Nós, acadêmicos e acadêmicas pretos, continuamos tendo que engolir a fórceps as bibliografias de intelectuais brancos e brancas que só permitem a negritude como objeto de pesquisa, não como protagonista narrando a sua própria existência. E a senhora sabe disso. O seu artigo reproduz esse parágrafo –-uma mulher branca determinando o certo ou o errado em uma obra de uma mulher preta. Isto vocês brancos já fazem há séculos.

Um artigo que se vale somente de referências brancas e eurocêntricas para analisar uma obra preta evidencia que não houve tempo hábil para uma análise crítica, a senhora sabe disso. Indico que a colega leia/ouça/veja Howard Rambsy, Juliana Barbosa, Preta Ilustra, Kamasi Washington, Masego, Rincon Sapiência, David Hammons e Chole x Halle. Não querendo me valer de uma referência imperialista, mas me obrigo a citar o New York Times, que convidou seis críticos para produzir uma única publicação sobre a obra “Black is King”. A senhora se julgou capaz de dar conta, sozinha, de um trabalho complexo, que envolve referências das artes plásticas, da música, da moda, da filosofia e da experiência do negro na diáspora.

Sejamos honestos.  Não foram as estampas de oncinha, brilhos e cristais que incomodaram, porque nunca houve estranheza quando os artistas brancos, incansavelmente, estabeleceram esses elementos como ponto de partida em relação ao continente africano. No momento em que a criação é desenvolvida por uma equipe composta por maioria de profissionais negros e negras, passa a ser estereótipo. Os pesquisadores e os artistas brancos sempre relegam à negritude o lugar de violência, miséria e subalternidade. Quem deve determinar o certo ou o errado em relação a uma estética de determinado grupo social?

Reproduzo a historiadora Maria de Sá: “Beyoncé, assim como nenhuma outra mulher negra na história da humanidade, não é uma divindade eximida de crítica.

Algumas pessoas de origem africana fizeram apontamentos muito pertinentes sobre o filme, mas sabemos que é impossível 1h25m de vídeo representar a complexidade dos 54 países que compõem o continente africano, ainda mais quando é produzido por uma pessoa que não é fruto desse território e nem se propõe a tal façanha. Black is King não vai se comunicar com pessoas negras de origem africana da mesma forma que se comunica com a diáspora, pois ele é produzido a partir da ótica de uma mulher negra diaspórica. Sendo assim, a produção é impregnada pela experiência da diáspora que difere muito da vivência pessoas negras africanas.”

Professora, junte-se a esse novo tempo: saia da sala de aula empoeirada e entenda que o povo preto, mais do que nunca, quer e vai falar de si. Sem o aval da branquitude. Utilizarei as mesmas palavras que a senhora: “deixar a história começar outra vez, e em outro sentido” –-sem o sentido do colonizador, com titulação acadêmica ou não.

Rodrigo França é professor de Direitos Humanos Fundamentais, ator, diretor, dramaturgo, escritor, artista-plástico e roteirista. Filósofo jurídico. Autor dos livros “O pequeno príncipe preto” e “Confinamentos & afins: o olhar de um homem negro sobre resistência e representatividade”.

 

Erramos: o texto foi alterado

O nome da antropóloga é Lilia Schwarcz, e não Lillian Schwartz, como afirmava o texto.