Os inesperados aspectos superficiais da vida offline
Supresa: Durante a quarentena, práticas como a troca de áudios longos de whatsapp têm aprofundado amizades mais do que anos de beijos e abraços. A verdadeira intimidade revelou-se metafísica.
Completei 150 dias em casa. 150 dias sacrificando-me pelo bem do outro. Perdi dinheiro, perdi o conforto que o dinheiro nos dá. Dispensei-me de dois empregos. Recentemente recusei surreais ofertas de palestras presenciais, que exigem translado para outros estados. Não sei o que será de mim amanhã.
Mas tudo isso pouco importa.
Pouco importa, porque mais de 100 mil brasileiros morreram de Covid-19 e não tiveram amanhã. E do momento em que escrevo este texto, hoje, para ser publicado amanhã, outros mil brasileiros terão perdido o direito de estarem vivos… amanhã.
A preocupação comigo é menor do que a preocupação conosco. Ubuntu, filosofia aprendida com ancestrais vindos de países africanos.
“Eu sou, porque nós somos” – Diz o primeiro mandamento Ubuntu.
Foi seguindo ensinamentos ancestrais que durante estes 150 dias fiz preciosa descoberta.
Liberar o tamanho da duração de trocas de áudio no whatsapp.
Abraçar a tradição oral.
Comecei no primeiro mês de isolamento social, quando uma pessoa conhecida, que mora no outro hemisfério, enviou para mim um audio de 20 minutos. A pessoa estava sozinha. Precisava desabafar. Colocar pra fora seus medos mais íntimos à respeito de si, da humanidade, e do futuro. O amanhã.
20 minutos de profunda conversa cadenciada, que ouvi no viva voz enquanto lavava pratos. A sensação imediata foi de que a pessoa estava ali, na minha cozinha, colocando tudo para fora, como deve ser entre duas pessoas íntimas quando uma delas lava os pratos.
Enviei a resposta de volta. 25 min de audio. Recebi a tréplica. Meia hora. Enviei outra. E assim passamos a madrugada. Éramos amigos íntimos de muitos anos. Mas só agora, finalmente, parávamos para conversar.
Em pouco tempo montei uma rede de correspondências de audio, que é o que no fundo mensagens de zap de 20 minutos são. Gente de todo o Brasil, de todo o mundo que, no viva voz, vêm nesses 150 dias, enchendo minha casa de presença.
Como os áudios são impessoais e intransferíveis, é como se cada um de nós dedicássemos um tempo de nossas vidas para fazermos um podcast exclusivo para a pessoa.
Se há maior demonstração de amor a carinho em tempos de pandemia, desconheço.
O processo assemelha-se muito à terapia. Você grava o audio sem ver no rosto a reação do que está sendo falado. Sem esse tipo de censura, se solta. Se soltando, se aprofunda. Se aprofundando, se comunica com qualidade inédita.
Especialmente as mulheres: com esse método descoberto durante a pandemia, experimentaram o inédito sabor de falarem por 20 minutos sem serem interrompidas por nós, homens, que sempre achamos que elas já falaram demais e que nós, em nossa superioridade machistóide, já entendemos tudo.
Também há a liberdade de responder os áudios quando quiser. Não é preciso responder na hora. Isso deixa cada resposta bem pensada, livre da agonia em procurar não frustrar o outro com supostas demoras.
Nas trocas de áudios, finalmente pude aprofundar de verdade minhas amizades a um nível que eu achava que não mais existia. No mundo físico, pré-pandêmico, qualquer tentativa de conversa profunda é, em algum momento, interrompida por um “mas e o Bolsonaro, hein?” ou “E a série da Netflix, você já viu?”. Ou simplesmente pelo álcool. Ou simplesmente pelo relógio.
Descobri que estar fisicamente perto das pessoas é, muitas vezes, estar afastado delas.
O contato físico impede o contato profundo. O físico impede o metafísico.
Fica-se na superfície, achando que só porque uma amizade está aí há mais de década, ela não é rasa.
Como se 20 anos toda quarta-feira jogando futebol depois do trabalho fizesse você conhecer alguém profundamente.
Muitos casais passam décadas se abraçando, ficando pelados na frente um do outro, se beijando, transando.
Mas quanto tempo passaram conversando?
Será que de fato se conhecem?
Bom, nestes 150 dias eu descobri que conhecer uma pessoa não é tirar a roupa e abraça-la.
É praticar um outro tipo de nudez.
Da fala. Da conversa. De um íntimo nunca compartilhado.
Ao vivo, não conseguimos ir além da superfície. A vida moderna tornou a vida offline sem empatia e egoísta.
O caso do brasileiro privilegiado que pode ficar em casa mas resolve lotar os os bares e praças da cidade no meio de uma pandemia que vem matando mil pessoas por dia.
Que resolve não ler mais as notícias “porque elas são ruins”.
Que nunca consultou o site da câmara de vereadores de sua cidade para acompanhar o que têm feito que foi eleito por ele, que opta por não acompanhar as estatísticas da pandemia e ir à praia tomar um sol porque para tratar da saúde mental dele.
O que pensa: Que se dane que vai morrer gente, o importante é sair do virtual para curar a solidão minha.
Esquece a solidão das famílias dos brasileiros quem ele está indiretamente sendo cúmplice em suas mortes.
A solidão do ego.
Eu aqui, ego 150 dias sozinho.
150 dias sem receber ninguém em casa.
Nunca me senti tão acompanhado.
E minha casa nunca esteve tão cheia de gente.
150 dias.
A verdadeira intimidade enfim revelou-se metafísica.