Precisamos nos descolonizar
Anotem: a palavra do século 21 será “descolonização”. Pouco mais de 400 anos atrás, apenas homens brancos europeus possuíam o privilégio de uma educação acadêmica. Foram eles que contaram a história dos colonizados. Foram eles que impuseram às colônias seus saberes. Que trouxeram às colônias uma ciência que, na época, dizia que a terra era plana. Além de uma imensidão de doenças e outras pestes, como a escravidão e imposição de sua religião.
Durante os séculos, a academia foi dominada pelo saber colonial. Nela, não havia espaço algum para colonizados. No século 21, isso começou a mudar. Hoje, temos movimentos de descolonização de museus, muitos deles tributos à ignorância, posto que eurocêntricos, viciados em apenas um dos tantos saberes e ciências que a raça humana desenvolveu.
O mundo melhora quando começa a questionar o eurocentrismo racista, sexista, patriarcal, homofóbico e transfóbico. Hoje, temos acadêmicas como a professora Rosane Borges , às vésperas de iniciar mais uma edição de seu concorrido curso “Descolonização do olhar: imperativo político e estético do nosso tempo”. A doutora em Ciências da Comunicação propõe que, antes do alvorecer descolonizador, é necessário primeiro cuidar de si, descolonizar-se. Iniciando-se pelo seu próprio olhar. Convidada pelo Quadro-negro para escrever sobre o assunto, Rosane desenvolveu um texto fundamental que publicamos com orgulho e axé.
Descolonização do olhar, reivindicação política do nosso tempo – Por Rosane Borges
Se no princípio era o verbo, não tardou muito para que a imagem ocupasse lugar central nas nossas formas de simbolização e mediação. Assim como a sombra segue a luz, as imagens nos acompanham (ou é o contrário?) diuturnamente: em tempos pretéritos tínhamos que “sair” para contemplar as chamadas imagens naturais (apreciar os elementos da natureza, contemplar o firmamento); hoje são elas, as imagens, que chegam até nós de maneira excruciante.
Da pintura parietal às inscrições contemporâneas acumula-se um patrimônio imagético em que a superabundância de dispositivos visuais torna o mundo legível porque visível. Nessa ambiência oculocêntrica, dominada por telas e por dispositivos do ver e do olhar, o tópico das representações de grupos historicamente discriminados ganha expressivo relevo, uma vez que as reivindicações contemporâneas por reconhecimento afetam e são afetadas pelas máquinas de imagem.
Torna-se, assim, imperativo ético que o olhar seja interrogado em sua dimensão política. Mais do que uma operação físico-sensorial, o exercício do ver e do olhar constitui-se em organização da cena do mundo por meio de prismas socioculturais. Se, como disse o filósofo Merleau-Ponty, o olhar é o nosso reitor, qual seria o lugar do dispositivo ótico na contemporaneidade, visto que ele é menos um franqueador de imagens, do que um agente que atua na faculdade de estabelecer relações?
A desconcertante História do olho, de Georges Bataille, nos leva a perceber, por meio de uma composição metafórica que o olho passa por variações, adotando certo número de objetos substitutivos, conservando sempre seu aspecto voraz.
A voracidade do olhar racista, sexista, patriarcal, homofóbico, transfóbico é exercida devorando corpos e culturas sem que haja uma redistribuição imaginária e real dos lugares dos sujeitos que têm o poder (os que olham e que consomem) e dos que não têm (os que são vistos e são mercadorias de olhares). O lugar do ex-ótico foi construído com base nessa assimetria, seja no campo das artes, da ciência e da cultura audiovisual. Enfrentar a dinâmica do olhar nestes três domínios mostra-se exercício inescapável para reposcionarmos o debate sobre o papel das visualidades na manutenção das assimetrias e na possibilidade de sua superação.
Com a ascensão da revolução tecnocientífica, a dimensão maquínica dos exercícios do ver se estabelece como um vetor importante: cinema, rádio e, posteriormente, a televisão, o computador e, mais recentemente, o celular são resultado desse empreendimento tecnológico. Mesmo evocando desejos e inconsciente coletivo, as máquinas do ver se dinamizam segundo as regras do sujeito cartesiano, aquele que vê e organiza a cena do mundo. É nesse momento que o olhar onividente, colonizador se impõe. A aventura criminosa da colonização usufruiu dessa condição do olhar, fazendo dos outros do mundo (negros, indígenas) mercadorias de olhares.
Enfrentar o olhar colonizador, que destitui e mata (o racismo policial o comprova), supõe a assunção de outros enquadramentos do mundo. Os destituídos e excluídos vêm solicitando novas formas de ver e construir sua história e sua cultura. Como lembra o antropólogo Massimo Canevcci: entre “quem representa” e “quem é representado há um nó linguístico específico relativo ao que chamo divisão comunicacional do trabalho, que precisa ser enfrentada nos métodos e nas pragmáticas. Entre quem tem o poder de enquadrar o outro e quem deveria continuar a ser enquadrado – eterno panorama humano – se ossificou uma hierarquia da visão, que é parte de uma lógica dominante a ser posta em crise na sua presumida objetividade. É insuportável que na comunicação digital proponha-se um neocolonialismo midial com uma divisão hierárquica entre quem representa e quem é representado, entre quem filma e quem é filmado, quem narra e quem é narrado, quem enquadra e quem é enquadrado.”
Sob esse viés, a descolonização do olhar configura-se como um empreendimento inescapável para que as concepções de humano e de humanismo, tão caras ao projeto moderno, possam alcançar mais da metade da população do planeta, deixada de fora pelas operações seletivas de um olhar que vê e constrói o mundo a partir de camadas ainda muito restritas, limitadas e, portanto, excludentes.
Rosane Borges é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora colaboradora do Colabor (ECA-USP)