Mas, afinal, quem é Neymar Jr. ?
No último domingo, Neymar Jr. , o maior astro do futebol brasileiro, causou comoção ao acusar um adversário de tê-lo chamado de “macaco”, em campo. Nos últimos dias, as imagens e sons da transmissão do jogo do Paris Saint-Germain versus Olympique de Marseille foram exaustivamente examinadas. Até ontem, quarta-feira, nenhuma imagem ou som da injúria racista reivindicada por Neymar havia emergido para corroborar sua versão. Pelo contrário. Em uma reviravolta, o que descobriu-se foi o jogador brasileiro, proferindo uma injúria homofóbica contra o jogador que havia acusado de racismo.
Antes mesmo, Neymar já vinha sendo atacado, nas redes do Brasil e do mundo, por sua ligação com Bolsonaro (um chefe de Estado inúmeras vezes acusado de homofobia, racismo e misoginia) e seu silêncio ensurdecedor a respeito do movimento Black Lives Matter, e das questões racistas no Brasil. Chamaram-no de oportunista. Acusaram-lo de surfar na onda que seu amigo Lewis Hamilton, piloto negro de Fórmula 1, vem liderando com brio e sucesso. De tentar se safar da ofensa homofóbica que proferiu acusando a (hoje provado) vítima no caso.
A maioria do movimento negro brasileiro, mesmo não alinhada ideologicamente com o jogador brasileiro, saiu em sua defesa. Sabe que a veracidade ou não das acusações de Neymar Jr. não muda o fato de que vivemos uma pandemia racista que sentimos na pele. Não importa se Neymar simulou mais uma queda. O que importa é que quedas são metáforas da vivência do negro em um mundo no qual ele não é bem vindo.
Mas afinal quem é Neymar Jr. ? Um homofóbico que teria aproveitado-se da pauta antirracista quando lhe conveio? Um sujeito de cor em um continente que até 60 anos atrás exibia congoleses em zoológico? Ou mais uma vítima de racismo que é tratada como culpada? Em artigo para o Quadro-negro, o historiador Jonathan Raymundo fala sobre colonialismo e filosofia Kawaida e mostrar que a questão é maior.
Como nos resgatar – Por Jonathan Raymundo
“Quem é você? Você não sabe? Não me fale ‘negro’ – isso não é nada! O que você era antes do homem branco te chamar de negro? E onde você estava? E o que você tinha? O que era seu? Qual língua você falava? Qual era seu nome? Não deve ter sido Smith ou Jones ou Bunch ou Powell – esse não era seu nome! Eles não têm esse tipo de nomes no lugar de onde nós viemos. Não, qual era seu nome? E por que você não sabe agora qual era seu nome naquela época? Para onde ele foi? Onde você o perdeu? Quem o levou? E como ele o levou? Que língua você falava? – como o homem tirou a sua língua? Onde está sua história? Como o homem desapareceu com sua história? Como o homem fez? O que o homem fez para te fazer tão burro quanto você é agora?”
Essas palavras acima, ditas por Malcolm X, pensador e militante negro estadunidense assassinado em 1965, definem a complexidade do jogo colonial. Colonização não é apenas sobre mercado, mas sobre controle da nossa subjetividade. O negro é uma invenção colonial. Não existia algo com “o negro”.
Existia o nagô, bantos, jejes… Tal como não existe o inglês, o italiano, o germânico. O branco também é uma invenção colonial. Branco é metáfora de poder. Ou seja, o Branco é uma grande engrenagem culturalmente construída para assumir controle das definições de mundo que emergiriam após o momento colonial.
Como nos diz o também estadunidense, o professor Carter G. Woodson (1875-1950) em “A deseducação do Negro”:
“O sistema atual sob controle dos brancos treina o Negro para ser branco e, ao mesmo tempo, o convence da impropriedade ou da impossibilidade de se tornar branco. Isso obriga o Negro a se tornar um bom Negro pelo desempenho do qual sua educação é inadequada. Para exploração branca do Negro através da restrição econômica e da segregação, o sistema atual é sólido e, sem dúvida, continuará até que isso dê lugar a uma política mais sanitária e não a farsa atual de manipulação racial em que o negro é uma marionete”.
Estabeleceu-se que humanidade é quem tem pele branca. Fez-se de quem não é branco, o outro. Não qualquer outro, mas inferior, o ser bestializado, brutalizável, o bárbaro. Pensadora brasileira, a professora e psiquiatra Neusa Santos, em “Tornar-se Negro” diz que:
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.”
Como se dá esse resgate? A filosofia Kawaida diz que cada pessoa deve fazer a si próprio 3 perguntas: “Quem sou eu? Eu sou realmente quem sou? Eu sou realmente tudo que poderia ser?
Essas perguntas só podem ser respondidas de maneira autênticas quando destruímos em nós a obra da colonização. Quando deixamos de ser negros e nos tornamos negros. Quando restauramos nossa subjetividade estralhaçada pelo sistema colonial.
É preciso lembrar que em 1958, apenas há 62 anos atrás, a Bélgica montava seu último zoológico humano com 598 congoleses, incluindo 273 homens, 128 mulheres e 197 crianças. Toda Europa foi lá conferir a atração. A Bélgica do imperador Leopoldo 2º mandava torturar e cortar a mão dos congoleses que não produziam o suficiente.
Colonizadores franceses tinham como esporte cortar barrigas de mulheres e crianças Haitianas para apostar quem morria primeiro.
Precisamos resgatar o conhecimento das atrocidades coloniais, e das glórias de de nossa história, valores, pensamento, espiritualidade. A dificuldade de se dizer negro é que se a perspectiva é colonial, o que se estar a dizer é que se aceita a inferioridade. Só o resgate de nossa história pode dar sentido a nós mesmos, e a episódios como o de Neymar Jr.