Carta aberta de uma historiadora negra para Glória Maria

Como diz introdução da carta aberta escrita pela convidada do Quadro-negro hoje: Direto ao ponto. Não existe “cultura do cancelamento”. O que existe são pessoas nunca antes criticadas publicamente chamando críticas de “linchamento virtual”. “Cultura do cancelamento” de verdade é o que sofreram pessoas como Ágatha Félix, “cancelada” por um tiro de fuzil disparado pela polícia no Complexo do Alemão no fim de 2019. “Cancelado” foi o americano George Floyd, asfixiado pelo joelho de um policial estadunidense, em Minneapolis. Aqui, temos uma historiadora negra se dirigindo a uma jornalista negra. Nada de cancelamento. E sim, e no fundo, um lamento.

Em entrevista à jornalista Joyce Pascovich, Gloria Maria, uma senhora negra, jornalista também veterana e, posto que a filosofia preta é sobre ouvir os mais velhos, pois neles está a sabedoria, detentora de um poder avalista, declarou não simpatizar com a ideia de que tudo seja racializado. “Eu acho tudo isso um saco. Hoje tudo é racismo, preconceito e assédio.” Caroline Sodré, historiadora especializada em relações étnicos-raciais discorda. E discordar não é, nem nunca será, cancelar.

 

É fundamental sim racializar pautas e vivências – Por Caroline Sodré, historiadora  

Direto ao ponto. A fala de uma senhora negra como a sua, Glória Maria, que “hoje tudo é racismo, preconceito e assédio”, na prática uma crítica aos pensamentos da nova geração preta acadêmica, confirma e ilustra a forma com que o racismo se estrutura no nosso país.

O preconceito e o assédio estão em todos os lugares e tomam formas diversas. Reproduzir o discurso hegemônico que contradiz fatos é, além de anti-jornalismo, dar razão à estrutura que nos faz acreditar, como mulheres negras, que para chegarmos em lugares de poder, precisamos incorporar o discurso imposto pela própria estrutura. 

Nessa estrutura, mulher negra, consciente e racializada não consegue espaços. Somos menos de 4% em cargos de liderança dentro de empresas no Brasil. Tudo o que o sistema de poder precisa são de pessoas como a senhora reproduzindo essas falas.

Sabe as falácias “os africanos escravizavam eles mesmos”, ou “quem libertou os negros foi a Princesa Isabel”? Pois bem, são narrativas históricas que se tornaram hegemônicas, justamente por conta de negros que, pensando como a senhora, servem como justificativa retórica aos defensores do atraso.  Quando Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, diz que o movimento negro de “escória maldita”, e a senhora diz que “tudo hoje é racismo”, se expressam, e têm o direito de se expressar. Mas não ajudam.

Quando não conseguimos enxergar além de nossas vivências, estamos mais uma vez provando que descolonizar nossos olhares não é uma tarefa simples. Segundo Bell Hooks: “A integração racial, em um contexto social em que os sistemas de supremacia branca estão intactos, solapa os espaços marginais de resistência ao divulgar a premissa de que a igualdade social pode ser obtida sem mudanças de atitudes culturais em relação à negritude e às pessoas” (HOOKS, bell. Olhares negros, pag. 47, 2014). Ou seja, é preciso compreender toda a complexidade da narrativa hegemônica brasileira, para entender que nossos olhares são treinados a acreditar nas estruturas brancas. 

Eu sei, não é tarefa fácil. Como consequência de uma atitude deliberada de nossa sociedade, 87% dos analfabetos funcionais do país são pretos. Como descolonizar olhares se tudo o que nos mostram reproduz a colônia em sua essência? Como aquilombar pensamentos se não temos acesso? E quando temos, nos tornamos parte do ambiente para poder sobreviver.

Talvez, Glória, há quase 50 anos, quando a senhora entrou para a TV Globo, ainda existisse resistência em seus pensamentos. Talvez, ser a única mulher negra no jornalismo por anos tenha feito o apelido “neguinha” se ressignificar como algo positivo. E isso é legítimo. Sua vivência é única e incrível, assim como seu trabalho e sua trajetória, mas isso não quer dizer que a luta racial, aqui, fora da bolha da elite, seja algo “chato”.

Antes, ser a única negra na equipe era “aceitável”. Agora não acreditamos mais nisso. Lutamos hoje para que essa pauta não seja “chata” para os que estão por vir. Na verdade, lutamos para que essa nem seja uma pauta no futuro. Lutamos para não termos que expor nossas dores a fim de lembrar aos privilegiados, os seus espaços privilégio. Lutamos para termos outras Glórias Marias no topo.

Não precisamos concordar. Mas fico triste em pensar que nossas reivindicações chegaram até a senhora de forma distorcida, isso é mais um sinal de que temos que aprender democratizar sempre mais nosso discurso. Por outro lado, acho ótimo fazer parte de uma geração que pelo menos tenta ressignificar os símbolos de poder. De chatice em chatice, tentamos contar uma outra história, a partir das perspectivas que nos fizeram acreditar que eram marginais.