Os sudestinos
Sou sudestino. Mas exatamente de que estado do sudeste? Não importa. Como para nós, sudestinos, também não importa quando se apresenta alguém nascido no Rio Grande do Norte, outro no Piauí. Chamamos ambos de nordestinos.
Quando trabalhei em Tóquio, fui a Osaka, cidade a 3 horas de trem bala, e durante um jantar com locais declarei-me encantado com o povo japonês. Constrangidos, meus amigos explicaram as enormes diferenças culturais que marcam o povo japonês Kanto, o que vive majoritariamente em Tóquio, e o Kansai, que tem em Osaka seu centro. Para um sudestino, não importa. É tudo japonês. Pode ter nascido no Vietnã. É japonês.
Nós, sudestinos, temos certeza que conhecemos os americanos por conta de nosso contato com novaiorquinos, o povo francês por termos passado uma semana em Paris, e a abstração “os africanos” por termos visitado um dos 47 países da África.
Uma característica definitiva dos sudestinos é a de que temos certezas, não opinões. Leia um texto como esse, escrito por um sudestino. Compare com um escrito por quem não é.
Sim. Quem não é. Porque outra característica do sudestino é achar (perdão, ter certeza) de que quem não é sudestino, não é.
A não ser que exista para nos servir. Aí a pessoa passa a existir um pouco. O outro só se materializa para nós quando este aceita jogar um jogo de nome misterioso, praticamente maçônico, embora profundamente infiltrado em nosso cotidiano hereditário.
Então, para mantermos a exclusividade do crivo, das certezas fantasiadas de opiniões amamos tudo o que serve ao centro, fetichizando o que não é. Um prêmio de literatura ali, mas nunca a uma empresa editora que não seja sudestina.
Recentemente a TV fez 70 anos sustentada com novelas ambientadas fora do sudeste mas interpretadas por atores e atrizes sudestinos. Com programas de humor que estereotipam quem não é do sudeste, dando picos de audiência e dinheiro para o dono sudestino da emissora.
Consumimos Luis Gonzaga e Nação Zumbi e sertanejo universitário, mas desde que o lucro com o consumo destes produtos vá para uma gravadora baseada no sudeste. Batemos palmas para o cinema pernambucano, mas levamos ao Oscar filmes de produtores sudestinos. Fazemos sem ter muita culpa disso.
Pois outra definitiva característica de nós, os sudestinos, é termos muita e convicta consciência à respeito dos outros, mas nenhuma sobre nós mesmos.
Razões nos acharmos o centro, e não vermos nosso joelho no pescoço do outro, não nos faltam. Aqui estão os times de futebol com as maiores torcidas. Aqui também estão as maiores facções do crime organizado. E também aqui nasceu a Igreja Evangélica. São sudestinos os maiores bancos. Nunca houve uma bolsa de valores fora do sudeste. E são desta região os grupos de mídia mais influentes do Brasil.
Dinheiro, religião, futebol, violência e entretenimento. A base de tudo o que somos hoje como sociedade está centralizada no sudeste. O sudeste é aqui. E tudo o que não é cá, é lá.
Esta é a verdadeira polarização que gera e degenera o Brasil, para além, muito além da polarização ideológica que hoje tanto se fala à respeito do que ocorre conosco. Uma polarização que “começou ontem”. Na verdade, cortina de fumaça.
O Brasil é lá e cá.
De lá, precisaram migrar para o sudeste de Getulio Vargas a Caetano Veloso. De lá, vieram os que construíram cá. E cá estamos. O sudestino Marcelo Tas desdenhando do recifense Jones Manoel, chamando -o de “guruzinho youtuber”. O sudestino Jair Bolsonaro dizendo que “a única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas”.
Outro traço marcante da vida do sudestino, ainda que também não reconhecida pelo próprio, é o privilégio de nunca ter sido necessário deslocar-se de onde nasceu para, digamos, vencer na vida. O que seriam de Marcelo Tas e Jair Bolsonaro, se não tivessem de bandeja a mamata de terem nascido sudestinos? É um exercício quase tão interessante de se fazer quanto imaginar Jones Manuel, nascido no sudeste, ou o Maranhão como centro do país.
Sem esforço, pode-se cravar Jones Manuel e o Maranhão seriam menores. Tudo no sudeste, exceto a população marginalizada, é menor, porque encontrou da vida resistência menor.
Vivemos, hoje, isso. O ápice do Brasil sudestino.
O ministro da saúde, sudestino, não sabe o que é o SUS. O da educação, também sudestino, associa homosexualidade a famílias desajustadas, o que deveria, por obrigação constitucional, ser opinião, mas na boca de um sudestino, é uma certeza. Um ministro da economia, naturalmente sudestino, que deixa passar até erro de digitação em MP e ensaia deixar uma dívida pública capaz de reverberar por gerações.
Cá estamos.
Dinheiro, religião, futebol, violência e entretenimento.
Cá estamos.
Experimentando mais uma vitória do nosso projeto de poder.
Nós. Os sudestinos.
Admirando, triunfantes, o brilho do breu.
Vivendo a estarrecedora glória de um Brasil menor.