‘O enigma de outro mundo’, de John Carpenter, é o filme do Halloween 2020

Nada nos aterroriza mais do que a fluidez da vida.

Fluido é o pensamento, fluido é nosso caráter, fluida é nossa sexualidade, fluido é nosso desejo. Fluidos são os sonhos, e fluida é a saúde de nosso corpo, que é mais líquido do que sólido; um corpo que cospe, espirra, sangra, sua, ejacula, chora, jorra.

Fluidos também são os rios e o comportamento das marés. Fluida é a instabilidade da crosta terrestre. Terremotos e vulcões e catástrofes naturais acontecem de forma imprevisível.

Em nossa arrogância, a nós, seres humanos, aterroriza a imprevisibilidade.

A existência é gosmenta. Cambiante. Metamorfoses movimentam seu mecanismo. Ambiguidades caracterizam seu aspecto indomável.

Por isso, 7 mil anos atrás, resolvemos domar o mundo. Regular, com leis, com a invenção do certo e do errado, nosso pensamento, nosso caráter, nossa sexualidade, nossos sonhos e desejos.

Em 1982, John Carpenter estreou “O enigma de outro mundo”, filme que conta a história de algo gosmento que aterroriza seres humanos. Algo. No original, o filme chama-se, traduzido do inglês, “A coisa”.

Uma “coisa” sem forma, sem gênero, nem macho nem fêmea, nem zero nem um, nem certo nem errado. Algo que vai se metaforseando em cada vítima, fazendo-se passar por ela, passando, após uma apoteose de fluidos, a conviver do nosso lado.

Os personagens, os seres humanos do filme, recebem a visita de um monstro que representa, portanto, a existência. A natureza ambígua da vida. É especialmente comovente o estado dolorido, manco, agoniado, dos monstros que são flagrados pela câmera ainda em processo de metamorfose. Ainda em construção. Nos emociona porque somos exatamente e também seres em construção.

Então, no filme, personagens e espectadores, confrontados com o horror de nossa própria mercê, começam a desconfiar uns dos outros. Afinal, quem é gente? Quem é monstro? Ninguém, nem o espectador, sabe. E mais aterrorizante do que descobrir, é não saber.

Carpenter escancara em nós o terror que temos da idéia de que estamos sempre em construção, de que não somos estáveis. A repulsa que sentimos da idéia de que confiar no outro só é possível se esse outro for obra acabada.

O terror, a paranóia, essa desconfiança de que o outro é um impostor, é a pauta do ano de 2020. Enquanto o videogame do momento, Among Us, tradução “Entre nós”, faz sucesso, nos perguntamos hoje, a todo momento; quem não é o que parece?

No Brasil 2020, os grupos se perguntam: “Será que temos um conservador entre nós? Alguém que nega o holocausto? Alguém que acha que a Terra é plana? Que a escravidão no Brasil não foi tão violenta assim?”

E viceversa: “Será que temos um comunista, globaliza, abortista no grupo?”

O filme, desenvolvido por americanos interessados em fazer uma parábola sobre como é aterrorizante viver em uma país paranóico, desconfiado, o faz de forma e conteúdo inéditos. Ao invés de ter-se o habitual esquema de cada vítima morrendo por vez na mão desse monstro chamado “A coisa”, essa coisa chamada “vida”, o filme concentra em uma rara ideia de coletivo.

A preocupação não é do monstro matar todos os personagens. É dele chegar nas cidades e contaminar o mundo inteiro.

Como na vida real, de certa forma, aconteceu. Basta olhar para 2020 e as pessoas-coisas metarfoseando-se, doloridas, mancas, agoniadas, para tentar se adequar ao mundo. No Brasil, uma radical feminista torna-se uma desgovernada líder de grupo de ultradireita. E a cada semana uma pessoa pública que se diz antirracista acaba traindo-se e revelando-se racista.

Na cena mais intensa de “O enigma de outro mundo”, quando todos os personagens se reúnem para serem testados, Carpenter usa nosso próprio preconceito: temos certeza que o personagem negro é o monstro e que, sentado ao seu lado, o militar é o herói. A conclusão da sequência é uma lição doída, útil e inesquecível para o espectador.

John Carpenter é autor também do filme de terror, original, “Halloween”. Uma obra-prima que muito diz à respeito da sociedade que construímos, onde o terror pode ser vivenciado sob a luz do dia, na esquina de casa, sem preconceito.

“O enigma de outro mundo” é seu filme favorito. Ultimamente, tem sido listado como uma das obras-primas não só do gênero, como da história do cinema.

O final do filme é ambíguo e representativo das tensões raciais, da masculinidade frágil, e do clima apocalíptico que estes fatos representam.

O melhor filme para esta noite de Halloween 2020 fala sobre o terrível mundo que escolhemos viver.

No filme, a coisa não é o monstro.

O monstros somos nós.

Conformados em sermos apenas coisas.

No filme, a coisa não é o monstro.

Nós somos a coisa.