Aos 15 anos, brasileira filha de senegaleses dá lição sobre racismo no Brasil

A nova colaboradora do Quadro-negro é Ndeye Fatou Ndiaye. Estudante, foi notícia em todo o país quando, em maio deste ano, foi vítima de racismo em um colégio de classe média alta do Rio de Janeiro. Meninos brancos e privilegiados, com acesso à educação, zombando de sua colega por conta de sua pele. Pois bem, como o leitor irá constatar, Ndeye Fatou é dona de um texto primoroso, de um raciocínio sofisticado e de uma retórica impecável. Por isso, é a primeira de sua turma a tornar-se colaboradora de um dos maiores jornais do Brasil. Aqui, ela irá escrever sobre o que quiser. Gostaria ela de ter comemorado o Dia da Consciência Negra. Mas o chamado foi maior que sua vontade. Atenta aos chamados, Fatou escreve sobre isso. Como concentrar-se em outras tantas questões negras, em um país racista como o nosso, que nós horroriza todos os dias com histórias como a do assassinato de João Alberto? Ela, do alto de seus 15 anos, responde. 

Um crime trágico, simbólico e provocativo – Por Ndeye Fatou Ndiaye

Ontem, no dia 20 de novembro, uma das datas mais importantes para a negritude brasileira, em que todos nós tínhamos nossas pautas e reivindicações definidas, acordamos com mais uma tragédia: o assassinato cruel e racista do nosso irmão João Alberto em uma das maiores redes de supermercados do mundo.

Esse caso me fez lembrar de dois autores africanos, que servem de guia para superar este trauma. O primeiro, Kwamé Nkrumah, líder pan-africanista de Gana, afirma que “Quando estamos acuados, costumamos nos reunir naquilo que nós somos”. Esse pensamento se alia ao de Léopold Sédar Senghor, primeiro presidente do Senegal, que diz “Nós somos nossa africanidade, o conjunto dos nossos valores africanos de civilizações”.

O assassinato além de trágico, é simbólico e provocativo. Representa um recado para 56% da população brasileira, que vive o tempo todo assombrado pelo racismo. De certa forma, é um modo de nos desencorajar, de nos amedrontar, de pôr em xeque todas nossas conquistas, ainda que muitas delas sejam tímidas. Mesmo assim, é evidente que avançamos em algumas questões. A negritude, em sua grande maioria, agora sabe desconsiderar algumas provocações e até ações reativas do sistema racista.

Um dos legados do dia da Consciência Negra é a juventude dar um salto de conhecimento político, étnico e racial inimaginável. O 20 de Novembro é dia no qual nos aquilombamos e refletimos acerca das injustiças raciais que estruturam o Brasil. O sistema racista sabe disso e vai procurar caminhos para continuar perpetuando o racismo.

Os assuntos que nos dividem, que nos fragmentam são noticiados o tempo todo. Cabe então a nós falarmos sobre os assuntos que nos unem. O dia da Consciência Negra é um momento oportuno para reforçar nossos laços.

Ontem falaríamos de Zumbi. Falaríamos para nossas crianças negras como os seus antepassados compravam a carta de alforria de seu irmão negro. Falaríamos das ações afirmativas para inserir negros no ensino superior. Falaríamos de história e literatura afro-brasileira. Recomendaríamos livros de Chimamanda Ngozi e Chinua Achebe.

O sistema racista não deixou. Ontem tivemos que limpar as lágrimas para reforçar que João Alberto tinha filhos, tinha esposa, era gente. Tivemos que falar sobre como a cada 23 minutos uma pessoa negra é assassinada no Brasil, vítima do racismo. Tivemos que engolir novamente a brutalidade policial.

Na década de 80, o filósofo pan-africanista senegalês Cheikh Anta Diop alertava que o sistema racista imposto a nós negros iria acabar conosco intelectualmente, moralmente e fisicamente. Amílcar Cabral, pan-africanista de Guiné, nos diz que uma serpente pode até mudar de pele, mas continua sendo uma serpente. O racismo sempre vai procurar caminhos para nos aniquilar, cabe a nós não cogitarmos desistir em nenhum momento. Por mais que seja dolorido e simbólico, o assassinato do João Alberto, no dia da consciência negra, deve ser  oxigênio para turbinar a luta contra o racismo. Devemos nos reunir naquilo que somos, na nossa africanidade.

João Alberto não pode ser só mais um a cada 23 minutos. Da mesma forma que o racismo mata, a sua, a minha, a nossa luta antirracista salva vidas. Armaremos nossa juventude com ciência, com educação, com consciência. Afinal, toda nossa luta é para que no futuro nossa juventude não amanheça com a manchete: ‘“Racismo me tirou a pessoa que mais amava, diz pai de homem morto por seguranças no Carrefour”.