Em ‘Tenet’, ator negro interpreta um homem branco

A imaginação do diretor inglês Christopher Nolan,  autor notabilizado por um cinema de tramas de ficção científica pseudo-complexas, já produziu imagens das mais inverossímeis do século 21. Ele já entortou a cidade de Paris em “A Origem”, de 2010. Já nos fez viajar para outra galáxia, com auxílio de tecnologia vinda do futuro, em “Interestelar”, de 2014.

Mas nada do que ele criou é tão inverossímil e delirante quanto uma cena no início de seu novo filme, “Tenet”, de 2020. Nela, um negro consegue se infiltrar em um batalhão de policiais na supremacista Ucrânia. Mesmo de máscara, dá-se para ver-lhe a cor da pele do personagem, óbvio. Nada, nem alienígenas do espaço, é mais inverossímil que um ucraniano agindo normalmente a um negro armado correndo pra lá e pra cá. 

Por conta das metáforas que pode-se recolher de “Tenet”, que por algum tempo foi a esperança de que o público voltasse, em plena pandemia, a frequentar cinemas, é o grande filme do ano.

A trama trata de um herói que quer salvar o mundo de uma arma que reverte a entropia de objetos. O mundo está a perigo, invertido, andando para atrás ao invés de andar para a frente.

A entropia, e as leis da termodinâmica, são de conhecimento milenar das culturas não ocidentais. Rudimentares, descobrimos muito recentemente que todos os sistemas que a tudo compõem estão em irreversível desorganização.

Das células de nosso corpo até a galáxia mais distante, tudo está se desorganizando, se desmanchando. 

No Brasil, claro, a sensação de entropia, de desmanche moral de um povo que sobe no Twitter hashtags como #NãoVouTomarVacina, e não se revolta em massa contra o genocídio de pessoas negras é sentida a cada dia, no noticiário.

O Brasil anda em reverso. A entropia que nos implode.

“Tenet” poderia passar no Brasil.

Até porque é, no fundo, um filme de James Bond, desses que adoram estereotipar locações não estadunidenses.

O tal do James Bond negro que tanto se espera para os próximos anos, chegou. E é o incrível ator John David Washington, de “Infiltrado Na Klan”, dirigido por Spike Lee em 2018.

Só que nas mãos de um diretor que aparenta não se interessar em querer entender que, na prática, a experiência de cada pessoa neste planeta varia com a cor que ela tem, acabamos assistindo o absurdo: um ator negro interpretando um personagem branco.

O personagem de Washington em “Tenet”, é um homem que traz em sua fisicalidade nenhum traço da cor que tem.

Idris Elba, recentemente, em “Velosos e Furiosos apresenta: Hobbs & Shaw”, de 2019, fez um vilão que carregava em si a fisicalidade característica da cor de sua pele negra.

Assim como todos os atores do filme “Pantera Negra”, bem como suas participações nos filmes dos Vingadores.

O pai do ator John David Washington, é ninguém menos que Denzel Washington, no mês passado aclamado pelo New York Times como o melhor ator do século 21, até agora. Interpretando um advogado no filme “Filadélfia”, dirigido por Jonathan Demme em 1992, ou um músico de jazz em “Mais e Melhores Blues”, conduzido, em 1990, pelo mesmo Spike Lee que dirigiria seu filho, é todo fisicalidade retinta. Inteiro um negro.

Por isso, inclusive, foi escolhido pelo diretor Kenneth Branagh, em 1993, para interpretar um personagem branco em sua adaptação para o cinema da peça “Muito barulho por nada”, de Shakespeare. Branagh sabia que só um ator negro poderia dar conta da altivez ancestral do príncipe de Aragon.

Denzel nunca teve o azar de receber ordens de diretores como Christopher Nolan. Seu filho até que se sai bem em “Tenet”. Mas se sai bem interpretando um ator branco que interpreta um herói que tem a pele negra.

Exigência do mercado, ignorância do diretor? Ambos? Coniventes?

Não se pode saber. No ano em que o mundo colapsou-se e começou a andar ao contrário, “Tenet”, e tudo o que está errado com ele, é o filme perfeito para no futuro nos lembrarmos de 2020.

O ano da normalização do errado.