No BBB da desconstrução, show de autodestruição
Estamos todos cancelados. Saiu o resultado do paredão do BBB Brasília. Os novos presidentes da Câmara e do Senado foram eleitos por senadores e deputados que cancelaram suas próprias posições políticas, em troca de uma boquinha no governo. Enquanto a Covid-19 cancela mais de uma centena de pessoas por dia (este sim, o único cancelamento de fato que existe), normalizamos isso. E o que era para ter servido de válvula de escape para o brasileiro, transformou-se em um pesadelo de autodestruição particular, coletiva e ideológica. Cancelados estão se sentindo os espectadores. Uma delas, a colaboradora Ndeye Fatou Ndiaye, 15 anos, brasileira filha de senegaleses, consegue um feito: escreve um desabafo sensato. Aqui fora, gente como ela desfaz o estrago que os participantes têm feito dentro da casa mais vigiada do Brasil.
Fomos tão desumanizados que perdemos o direito de errar – por Ndeye Fatou Ndiaye
Na última semana, estreou o tão esperado BBB 21. Após uma edição histórica, as expectativas estavam lá em cima e todos foram surpreendidos com o anúncio dos participantes: seria a edição com mais pessoas negras desde o início do programa.
Após ver o sucesso de Thelma e Babu, a notícia não me surpreendeu. Afinal, a emissora finalmente percebeu que representatividade interessa ao público do sofá. Mas de todos os participantes, uma personagem captou a atenção de muitos brasileiros: Lucas Penteado.
Lucas Penteado é um jovem paulistano de apenas 24 anos. É ator, slammer, líder de movimentos estudantis e participante de causas sociais. Mas tudo isso será apagado, por apenas um erro. Uma noite que pode custar não só a sua permanência na casa, como também toda sua carreira.
Todos os dias falamos da cultura do cancelamento, mas gosto de pensar que quando se trata de pessoas negras ela adquire configuração totalmente diferente. Fora ou dentro da casa mais vigiada do Brasil estamos sendo constantemente cobrados. Se falamos demais somos os militantes, os chatos. Se falamos de menos, somos alienados, apáticos. E se erramos? Se erramos, nunca há espaço para desconstrução, ou melhor, para reconstrução.
Lucas, como todo jovem, errou! Errou e esteve disposto a aprender, a recomeçar. Foi em busca de conselho de seus irmãos pretos, mas foi recebido de forma totalmente cruel e desumana. Desde os xingamentos e insinuações, até o ato de proibi-lo de sentar à mesa, comportamentos e ensinamentos dignos de colonizador foram reproduzidos. Inclusive, na cultura africana o fato de proibir alguém de se sentar à mesa representa a mais cruel das punições: a sentença de morte.
Agora lhe faço um questionamento: a “punição” dada ao Lucas condiz com o erro que cometeu na festa, durante um momento de embriaguez?
Não, definitivamente não. E é contra isso que lutamos todos os dias, desde o sistema carcerário até simples discussões no Twitter. Fomos tão desumanizados, que perdemos o direito de errar. E ver pessoas negras, que eram referência, compactuarem com essas atrocidades, só mostra o quão colonizadas nossas mentes estão. Este era o momento de mostrar aquilombamento, resistência, reerguer uns aos outros na frente de milhares de brasileiros, mas nos fragmentamos.
Estamos assistindo a cenas de autoflagelações sem precedentes. O que era para ser um simples programa de entretenimento tornou-se drama e pesadelo para todos que se importam com o ser humano.