Favor não generalizar gente preta
O que vemos no BBB 21, especialmente a interação entre o número recorde de participantes negros, não deve ser generalizado. Enquanto tudo o de péssimo acontece dentro daquela casa, comunidades de gente preta aqui fora vivem em harmonia e resistem à dureza da vida com empatia e solidariedade com os seus.
Em, Quilombos, comunidades e reuniões do movimento negro, a vida continua, o cotidiano segue sem a menor similaridade com o que acontece no BBB.
Peço então permissão para aqui contar um pouco do meu BBB.
Moro em uma vila no subúrbio do Rio de Janeiro onde só moram mulheres idosas. A maioria pretas.
Eis um resumo do que aconteceu nos últimos 12 meses.
Um ano atrás, a mais idosa das moradoras, aqui residente há meio século, uma senhora de 90 anos para quem todas as manhãs líamos o jornal pois enxergar ela não podia mais e não abria mão do jornal impresso, essa senhora morreu do coração.
Retornou à ancestralidade, segundo a crença da maioria das moradoras da vila. No Ifá, crê-se que depois de nossa passagem por aqui, retornamos ao “eterno é”. Ancenstralidade.
Sua filha, de 65 anos, após o luto, após anos de dedicação integral à mãe, hoje pede dicas de maquiagem e cabelo às vizinhas.
Durante a pandemia, uma jovem neta de uma das moradoras veio, fugindo da crise financeira e do preço abusivo do aluguel, morar com a mãe. Esta jovem neta veio com a filha. Mais uma mulher na comunidade. Lara todos os dias enche o corredor da vila com correrias e brincadeiras. Foi automaticamente adotada por todas as vizinhas. Ganhou dez avós. Hoje, sinceramente, eu já não sei mais cravar com certeza qual delas é a avó biológica.
Biologia pouco determina nesta vila.
Em setembro, a gata vira-lata com quem vivo há 16 anos, repentinamente adoeceu e recebeu um diagnóstico de dez dias de vida. Passei a dedicar a maioria do meu tempo a interagir, ver filmes, ler e escrever com ela, além de um curso rápido de enfermagem veterinária para saber aplicar soro e injeções. Estamos há 150 dias vivos.
Biologia pouco determina nesta vila.
As duas gatas das vizinhas quase todas as noites fazem vigília na porta da minha casa. Ou talvez esta seja a casa da gata que mora comigo, e eu apenas um hóspede aqui e nesta vida.
Fizemos um grupo de zap, para trocar mensagens sobre eventuais sintomas de Covid. Nada. Grupo de zap mudo há meses.
No fim de novembro de 2020, resolvemos todos fazer um teste para nos liberarmos o convívio interno. Comemoramos o sucesso da empreitada com um churrasco. Algumas das vizinhas não ficavam bêbadas desde 1981. Foi um festival de abraços e depoimentos emocionados sobre o que cada uma vem passando, e o que cada vizinha têm representado nesta jornada.
No final do churrasco, o casal de novos moradores, dois jovens de 30 anos, anunciaram a gravidez. Engravidaram na vila. Em um mundo marcado pelo medo da morte, resolveram fazer um filho. E você já adivinhou o sexo da criança. A menina preta já tem nome, Thaís, e agora está para nascer, neste início de fevereiro de 2021, a qualquer momento.
Não me espantará se por alguma contingência, o parto acontecer aqui dentro, entre avós pretas e gatas fêmeas.
Enquanto lá fora só se fala em reality show e em uma reunião mal fadada de pessoas pretas, aqui pessoas pretas se acolhem, produzem e procriam.
Lá fora, reality show.
Aqui, a realidade é um acontecimento.
Favor não generalizar gente preta.