Em sua primeira live, Bethânia abriu um portal

Outro dia, astrônomos e astrofísicos anunciaram a descoberta de “estradas espaciais”, corredores gravitacionais por onde se pode viajar para uma outra galáxia a uma velocidade inconcebível por nossa tecnologia.

Comemorou-se. Aquele orgulho próprio ocidental de quem faz descobertas que já havíamos feito há milhares de anos.

Existe uma tecnologia que há dezenas de milhares de anos, impulsiona objetos para lugares inimaginados a uma velocidade instantânea.

Essa tecnologia chama-se cultura.

O que Maria Bethânia fez, nesse sábado de carnaval-dentro-da-gente, durante sua live.

Arranjos simples, precisos, como quem entende que o talento da cantora brasileira preenche e gera energia o suficiente para encher os estádios.

Está impossível viver neste Brasil de estádios e palcos vazios, onde a única coisa que parece multiplicar-se são armas , desinformação e gente vazia.

Mas ao fim de seu show, Bethânia cantou que uma flor brotará deste impossível chão. Foi o que vimos na noite de hoje. Essa tecnologia, a cultura.

Segundo os astrofísicos, portais celestiais se abrem de acordo com a energia gerada em um determinado ponto do espaço.

Bethânia, a intéprete que automaticamente torna-se co-autora da canção que toma pra si e dá para o mundo, gerou uma energia que penso não termos visto nos últimos 12 meses.

Ressignificou canções como “Evidências”, expurgou nossos furúnculos quando espremeu a canção “2 de junho”, composta por Adriana Calcanhoto, que conta a tragédia de Miguel, a criança preta que a patroa deixou cair do alto do prédio no Recife. Bethânia nos lembrou que “Cálice”, lançada por Chico Buarque em 1978, tem uma letra que sumariza exatamente tudo por que estamos passando em 2021.

E soprou em nosso rosto amassado pelos dias canções como “Vento de lá / Imbelezô”, de Roque Ferreira, que conta o que aconteceu quando o vento de Iansã dominador despertou no colo da manhã.

E preencheu o espaço entre as músicas com prosas, poesias e frases de Guimarães Rosa, como “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde”.

“Qualquer amor é um descanso na loucura”, completa a sentença de Rosa.

Não foi só um descanso dessa loucura que é viver entristecido o Brasil que Bethânia nos proporcionou.

Maria Bethânia abriu um portal. Uma oportunidade.

Durante sua live, certamente teve gente que, sentindo um impulso inexplicável de energia, pediu gente em casamento. Teve parente pedindo perdão de coisa feita 20 anos atrás. Teve gente que acabou de decidir por não mais se sujeitar às mazelas da vida e partir para uma ação definitiva à seu respeito. Teve gente que decidiu finalmente se amar como é, se aceitar como é. Teve gente que resolveu finalmente matar aquela garrafa que estava (a)guardada para uma ocasião especial. Teve gente que abriu todas as janelas de casa. Gente que decidiu largar o cigarro. Gente que resolveu passar a fumar. Teve gente que rezou. Teve gente que sambou.

Teve gente que voltou a enxergar um outro Brasil lindo, que sempre existiu, mas estávamos distantes dele.

Como em outra galáxia.

Quem teve a sorte de ver o portal que Bethânia abriu, e teve a coragem de aproveitar a oportunidade, parabéns.

E à Bethânia, brasileira, obrigado.