Documentário sobre Dilma revela líder preciosa
Respostas que levam a perguntas.
Quem escreve a História? Quem segura a câmera? Quem empunha o microfone? Quem edita o que é divulgado? Quem determina o que é verdade?
Resposta: quem detém o poder econômico.
Quem detém o poder econômico?
Segundo dados divulgados em 2018 pelo IBGE, mulheres ocupam apenas 38% dos cargos de chefia no Brasil. Tanto no setor público, quanto no privado.
Qual é o cargo de chefia mais alto de nosso país? E quantas vezes ele foi ocupado por mulheres?
A Presidência da República. Cargo ocupado por mulheres apenas uma vez, no mandato de Dilma Rousseff , que sofreu impeachment em 2016, no segundo ano de seu segundo mandato.
Qual a imagem que se tem da ex-presidenta Dilma Rousseff?
Mulher desarticulada, limitada, que falava em “estocar vento”.
Esta imagem foi construída por quem?
Quem escreve a História. Quem segura a câmera. Quem empunha o microfone. Quem edita o que é divulgado. Quem determina o que é verdade.
Verdade?
As cineastas Anna Muylaert (de “Que horas ela volta”) e Lô Politi são mulheres e em 2016 tiveram raro acesso ao Palácio da Alvorada, onde Dilma recolheu-se entre o julgamento do impeachment na Câmara de Deputados e o definitivo, no Senado Federal. Desta vivência, nasceu o documentário “Alvorada”, lançado esta semana no mais conhecido festival de documentários do Brasil.
Qual o nome deste festival?
“É tudo verdade”.
E o que é verdade?
Verdade é uma sopa temperada com narrativas frequentemente opostas. Não há verdade sem que se ouça os dois lados. O filme de Anna Muylaert e Lô Politi nos dá informações e elaborações preciosas, pois coloca na mesa uma narrativa que carece de registro e exposição, logo revelação.
E o que é registrado, exposto e logo revelado no documentário “Alvorada”?
A presidenta Dilma não é uma mulher desarticulada e limitada. Muito pelo contrário: é densa, vívida, lúcida, estável e segura. Tudo o que gostaríamos que a democracia fosse no Brasil.
Democracia?
Aos que caíram no golpe em só procurar informar-se segundo a versão hegemônica dos fatos, causará surpresa o filme as cenas em que a ex-presidenta discorre sobre John Milton e “Paraíso Perdido”, sua obra mais conhecida.
Golpe?
Golpe. Mesma coisa sobre a precisa relação que Dilma faz com Milton, o protestantismo, e o ano de 1640. Aos que caíram no golpe, levarão susto ao ver Dilma discorrer sobre a banalidade do mal via Arendt e Guimarães Rosa. Ou a enquadrar Aloízio Mercadante, quando este se mete a ser mais sabido que a ex-presidenta.
Golpe?
Golpe. Lô Politi e Anna Muylaert fazem de seu documentário um golpe de jogos de símbolos. É um filme de cerco, como “Bacurau” ou “Assalto a 13ª DP”. É, também, um ótimo estudo sobre espaços públicos e privados e sua relação com a vida pública e privada de pessoas públicas, como é cada enquadramento de “Barry Lyndon”. E é também uma espécie de “A regra do jogo”, quando observa os trabalhadores do palácio Alvorada em primeiro plano (enquanto o filme de Renoir previa a Segunda Guerra Mundial, “Alvorada” prevê o terrível destino que o país tomou após a saída de Dilma. Mas, o filme de Anna e Lô é, sobretudo. um filme sobre aquilombamento.
Aquilombamento?
No filme, Dilma está no Palácio da Alvorada, aquilombada com os seus. A câmera registra os rostos diversos em volta da presidenta. Assessor negro de dreadlocks, um sem fim de mulheres com cara de gente que não veio do sudeste. Povo. A câmera de “Alvorada” registra os últimos dias em que aquele palácio seria frequentado pelo povo trabalhador. A cena em que as funcionárias tiram fotos sentadas na cadeira presidencial, mistura de admiração com sensação de terem sido representadas enquanto Dilma esteve no poder, é o puro suco do que chamamos de aquilombamento.
Pureza?
Não há pureza na política. Os ideais de pureza são reservados a movimentos supremacistas, fascistas e nazistas. Em certa cena de “Alvorada”, Dilma Rousseff comenta que não é pessoa de se desequilibrar emocionalmente. Desde pequena. E que desde pequena sofria com o fato de não entender porque as pessoas se desequilibravam. Descobriu que tinha ela que aceitar que “todo mundo em algum momento se desequilibra”. Tinha ela que, “para poder amar as pessoas, tinha que aceitar o fato de que elas se desequilibram”. Parecia Dilma, serena, perdoar o desequilíbrio do brasileiro que bateu panelas em 2015 sem se informar com inteireza do que estava acontecendo nos bastidores do poder. Parecia Dilma entender que uma hora não só as pessoas, mas todo um país se desequilibra em algum momento.
Momento?
Sim. “Alvorada” é sólido em sua proposta: Ser um documento histórico. E optar por ser, até agora, o único documentário sobre o assunto que escolheu não mostrar nenhuma imagem dos manifestantes que na época vestiam verde a amarelo “pela família e Deus e contra a corrupção” e pediam o impeachment e que hoje vestem verde e amarelo “pela família e Deus e contra a corrupção” para pedir intervenção militar, exaltando torturadores de mulheres e alegando que a Terra é plana. O filme entende que o destino destes é a tal lata de lixo da História.
Se Tarantino escolheu reescrever a História em filmes como “Bastados Inglórios”, onde Hitler é morto, aqui os verde-amarelos sequer existem.
Não existissem eles, na verdade, em todo lugar e em todo tempo de nossa História, parece nos querer apontar Politi e Muylaert. O filme dela diz que talvez reduzir os movimentos conservadores, terraplanistas, supremacistas, neo-fascistas, escravocratas aos tresloucados que hoje marcham contra a vacina e que pediram a cabeça da única mulher que presidiu o país que mais mata mulheres no mundo é varrer para debaixo do tapete o fato de que essa é, sempre foi, há séculos, nossa condição predominante.
A História de nosso país é a própria de lixo, e Dilma uma exceção.
Uma alvorada cercada e impichada.