Antropóloga aponta o problema da subnotificação nos casos violência doméstica contra crianças

A comoção nacional pelo caso do menino Henry Borel não é, infelizmente, proporcional ao tamanho real da questão do abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. O problema é ainda maior que dimensiona-se na imprensa, quando casos célebres acontecem. Na academia, trabalha-se com o assunto em sua inteireza. A antropóloga Thuani Queiroz, que pesquisa o tema e conversa com crianças e adolescentes em escolas do Rio de Janeiro, estreia como colaboradora do Quadro-negro, chamando atenção para o problema da subnotificação de casos. Por quais motivos não se denuncia abusos? E quando há denúncia, não se acredita, como diz o poeta, “na pureza da resposta das crianças”? Thuani escreve sobre isso, e muito mais.

Em terra de criança, quem diz a verdade é gente grande? – Por Thuani Queiroz – Antropóloga

No dia 18 de maio celebraremos mais um Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, nossa segunda comemoração em contexto de pandemia. Nesta data, o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes incentiva ações variadas de informação e prevenção à violência sexual, que são desenvolvidas por Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), entre outros órgãos do Estado, por todo o país. Na ocasião, são implementadas atividades que vão da criação de plataformas de denúncia à realização de palestras temáticas, passando ainda pela produção de textos e vídeos informativos, que são veiculados nos seus respectivos sites e redes sociais, a fim de fazer com que a informação circule de forma cada vez mais ampla. Atualmente, os vídeos e textos informativos trazem uma preocupação em comum: o aumento da subnotificação de casos no período da quarentena.

Subnotificação se refere ao baixo ou incorreto número de notificação de casos, totalizando um número menor do que o estimado.

O Balanço Geral realizado pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), com dados construídos a partir das denúncias feitas ao Disque 100 entre os anos de 2011 e 2019, mostra um crescimento oscilante dos números totais de casos a cada ano, o que evidencia que, mesmo antes da ocorrência da pandemia, a subnotificação de casos de abuso sexual já era uma questão preocupante no Brasil.

Por que esta baixa incidência de denúncias?

Embora não se possa desconsiderar a responsabilidade do poder público em relação à baixa incidência de denúncias e, consequentemente, à subnotificação de casos, gostaria de dar ênfase, neste artigo, ao que se passa no âmbito privado, isto é, no contexto familiar do menor e seus responsáveis.

Segundo o Balanço Geral: 2011 a 2019, a residência do menor é o principal e mais frequente local de ocorrência dos abusos, correspondendo a 51% dos casos notificados em 2019. A casa do(a) agressor(a) tem a segunda maior porcentagem: 19,52%. Além disso, as três principais categorias de relação entre vítimas e agressores são: Familiares, Amigos ou Conhecidos, e Desconhecidos, respectivamente.

No ano de 2016, quando realizava a pesquisa para conclusão do curso de Bacharelado em Antropologia, tive acesso informações que convergiam diretamente com estes dados. Naquele contexto, pude contar com aproximadamente 300 relatos de homens e mulheres, adultos e adolescentes, que se dispuseram a falar sobre as violências sexuais sofridas em suas infâncias ou adolescências. Nos relatos, eles afirmaram ter sido abusados por mãe, pai, avô, padrasto, tio, tia, melhor amigo do pai, primo ou por pessoas consideradas da família.

Ora, se a maioria daqueles que cometem a violência sexual são familiares ou conhecidos da vítima, temos aqui um considerável obstáculo à concretização da denúncia já que, quanto mais próximo e mais íntimo for o agressor, mais credibilidade terá no ambiente familiar e, consequentemente, mais autoridade exercerá sobre a criança, produzindo, então, uma dinâmica hierárquica e coercitiva entre ele e ela. Muitos abusadores têm perfeita noção da facilidade de desacreditar uma criança socialmente, o que não só facilita o cometimento da violência, como o uso a ameaças do tipo:

Você acha que vão acreditar em você ou em mim?

Ninguém vai acreditar numa criança!

Vão dizer que você está querendo chamar atenção!

Desde a infância, os responsáveis tutelares são quem indica às crianças a quem e como se deve cumprimentar, sinalizando, por vezes, que pronomes de tratamento deve-se usar. Em outras palavras, são eles que vão ditar o grau de proximidade do menor com os adultos, influenciando, direta ou indiretamente, a consideração, o respeito e até mesmo o temor que tenderão a orientar as relações entre eles.

Nesse sentido, cabe destacar que a proximidade física e afetiva dos tutores com outros adultos, e a confiança estabelecida pela convivência entre eles podem e devem ser apontados como ferramentas potenciais tanto de facilitação da violência sexual, quanto de sua camuflagem e de quem a pratica. É justamente esse o ponto que interessa ressaltar aqui. Dada a relação de acessibilidade e os vínculos existentes entre o agressor, a vítima do abuso sexual e seus responsáveis tutelares, tudo leva a crer que a subnotificação de casos está ligada ao seu silenciamento na esfera privada.

Seja para preservar a harmonia do coletivo familiar, seja por constrangimento, medo ou qualquer outro motivo, fato é que o silenciamento dos casos de abuso sexual tende a contribuir para que mais casos se sucedam. A fim de evitar que isso ocorra, faz-se necessário ensinar aos menores os limites do próprio corpo e do corpo do outro. Mas, ainda mais importante, é convencê-los que nós, adultos, temos interesse e depositamos confiança naquilo que eles têm a nos dizer, de modo que, caso precisem, saibam que serão devidamente credibilizados.