Professor, preto, vacinado e deprimido

No Brasil, ou em todos os países que escravizaram africanos, a experiência de ser preto é pessoal e intransferível.

Porém, a algo comum a todos. O que nossa sociedade nos diz o tempo inteiro, como coletivo, é que somos uma espécie de “doença”, da qual o Brasil padece.

Crime tão grotesco quanto escravizar nossos ancestrais é, até hoje, tentar nos convencer de que o Brasil estaria melhor sem nós, esse vírus.

A primeira pessoa a morrer de Covid-19 no Brasil foi uma negra. Cleonice Gonçalves contraiu a doença de sua patroa, branca e rica, que voltava de uma viagem à Itália.

O Brasil pode ter fracassado em combater o vírus da Covid-19. Mas venceu em combater os descendentes dos escravizados que foram trazidos da África.

O IBGE informa que morrem 40% mais negros que brancos por coronavírus no Brasil. Que a chance de um negro morrer por coronavírus é 38% maior do que a de um branco.

“É um vírus que não escolhe cor nem raça nem classe social”, tenta-se estabelecer esta falácia.

A experiência de ser preto é impessoal e intransferível. Por isso, peço licença para agora alternar a narração deste texto para a primeira pessoa.

Nesta terça (25) chegou o dia de vacinar-me pelo SUS. Contemplou-se ontem professores da rede pública e privada do município do Rio de Janeiro. No posto de saúde, aos pés de uma favela, apenas brancos atendiam brancos. Não aparento a idade que tenho. “Você veio aqui…”, todos perguntavam, perplexos. Quando eu me identifiquei como professor, a perplexidade aumentou. Segundo o IBGE, apenas 16% dos professores no país são negros.

O Brasil pode ter fracassado em combater o vírus da Covid-19. Mas venceu em combater os descendentes dos escravizados que foram trazidos da África.

Na minha frente, as pessoas na fila, todas brancas, maioria de idosos, saía da sala com um semblante leve, renovado. Afinal, chegava ali, teoricamente, o fim de mais de um ano de medo de contrair a Covid-19 e morrer. As vacinas são, nesse caso, tanto contra o coronavírus quanto são vacinas contra o medo.

Para negros, o Brasil ainda não desenvolveu o vírus contra o medo da morte. Podemos morrer, e morremos, de tudo. Da ausência de direitos básicos como educação. Da abundância de violências contra nossos corpos.

Por isso, quando a enfermeira me espetou a agulha, só pude pensar na família de Joseph Laroche.

Joseph Laroche era o único negro a bordo do Titanic. Casado com uma branca que viajava com suas duas filhas nascidas do casamento anterior, com um branco. Sua esposa estava grávida de um filho seu. Na tenebrosa noite de 15 de abril de 1912, esposa e filhas foram embarcadas em botes salva-vidas. Sobreviveram. Joseph, não.

Até hoje, os descendentes de Laroche não comemoram o fato de seus antepassados terem sobrevivido ao naufrágio do Titanic . Pelo contrário. Choram a morte das 1.500 pessoas, os brancos e o preto, que morreram por negligência dos comandantes do navio.

Ao ser vacinado, não houve o que comemorar: eu estava sendo resgatado deste grande Titanic em que o governo transformou nosso país, esse navio sem comandantes.

Só pude chorar a morte dos brasileiros, pretos e brancos, que não puderam receber a vacina a tempo.

Só pude chorar nosso naufrágio.

Fui ao posto de saúde com a camiseta da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a qual pertenço, onde a bandeira desse Brasil que mata por negligência verde-e-amarela-ordem-e-progresso foi substituída por uma cor de rosa onde se lê, “índios, pretos e pobres”.

À noite, chega a notícia de que um dos baluartes da escola, Nelson Sargento, aos 96 anos, foi internado em estado grave com a doença. Chorei mais.

No fim dos anos 90, apareceu em meu apartamento e se apresentou como pintor de parede. Era um bico. Chocado, pedi para não pintar nada. Paguei o combinado, dei meu violão na sua mão, e pintei eu mesmo o apartamento, enquanto ele tocava o instrumento. Foi uma das grandes honras de minha vida, trabalhar ao som de um dos maiores mestres de nossa cultura.

Honras de minha vida, mestres de nossa cultura. Nossa, minha. A experiência de ser negro no Brasil é pessoal e intransferível.

Mas a consequência é coletiva.