Vale a pena nascer negro no Brasil?

Um ditado Bantô diz que “A cada criança negra que nasce no mundo, uma gota de orvalho cai sobre um copo de mel.”

Willie Hobbs Moore, primeira mulher negra a obter o título de PhD em física nos EUA, calculou, em um de seus estudos, que no útero de uma mulher grávida há mais células do que estrelas na Via Láctea, galáxia onde flutua nosso sistema solar.

Kathlen de Oliveira Romeo estava grávida de 14 semanas do primeiro filho. Pintou de batom o símbolo de masculino e feminino na barriga comemorando a gravidez, recebeu os parabéns, aconselhou-se com a avó como ser uma boa mãe, fez planos para a criança, se menino o nome será Zayon, se menina será Maya.

Kathlen, aos 25 anos de idade, estava vivendo o mel da vida. A gota de orvalho, Maya ou Zayon, pendia no alto. Ela escreveu em suas redes sociais: “Há 13 semanas e 3 dias com o amor da minha vida… Confesso que estão bem diferentes! Toda hora uma novidade! Acordo às vezes assustada e pensando que não é real…”

Kathlen não irá acordar nesta quarta-feira, 9 de junho. Nunca mais. Ela foi assassinada com um tiro na cabeça durante um confronto entre traficantes e PMs na noite anterior, no Bairro do Lins, Zona Norte do Rio, enquanto ia com a avó visitar um parente.

Zayon, ou Maya, foram assassinados antes mesmo de nascerem.

Escreve-se no plural porque cada pessoa é um sem número de outras tantas possibilidades de vida, e de descendência. Foram assassinados também os netos que por ventura Zayon ou Maya teriam no futuro.

Todos os assassinados, a mãe Kathelen, seu filho ou filha, seus netos e bisnetos que nunca chegarão ter a chance de serem concebidos, têm uma coisa em comum.

São pretos. Estão no Brasil. Gotas de orvalho cadentes em algo amargo, muito diferente de mel.

“Toda hora uma novidade!”, escreveu a jovem mãe de primeira viagem à respeito da vida que carregava no ventre. Já a morte de gente preta no Brasil, por contas de ações do Estado apoiado por parte da população, não é novidade alguma. Genocídio normalizado. Já não falamos mais dos mortos do Jacarezinho.

“Acordo às vezes assustada e pensando que não é real”. Nós não dormimos. Negro, rico ou pobre, periférico ou famoso, de direita ou esquerda, nunca teve uma noite tranquila de sono no Brasil.

A não ser durante os 9 meses em que dormimos, seguros, no ventre de nossa mãe.

Pois sofisticado, agora o genocídio negro no Brasil nos ataca até durante este sono. Antes mesmo de nascermos.

O Brasil prevenindo que mais gente preta nasça. E nascer pra quê? Nascer por quê? Se aqui a vida a nós, aqui, não é um copo de mel?

Nascemos aqui é para tornar este lugar melhor. Ao Brasil, os negros só deram o que de melhor tem a nação.

Mas vale a pena?

Ser negro, mesmo neste inferno a que chamamos de pátria, é uma alegria que só quem tem a pele negra sabe. Uma alegria e uma sorte praticamente impossível de ser realizada aqui.

Não dormimos. Não conseguimos acreditar. Mantemos a capacidade de nos surpreender com o que querem normalizar.

Mas nos amamos, nos desejamos, temos filhos e netos, pensamos no futuro, e estamos determinados a que mais de nós estejamos vivos, mais de nós tentando salvar o Brasil.

A essa altura, só gotas, muitas gotas, uma chuva de Mayas e Zayons, para nos salvar.

Só uma chuva de mel.

Por isso, choremos hoje gotas de orvalho.

Mas também nos amemos. Também tenhamos filhos, muitos filhos pretos, honremos Kathlen, honremos sua vida curta interrompida, e o que essa jovem mulher ousou fazer: Desejar. Ser feliz.

Por isso, choremos hoje, e sempre que acontecerem tragédias desta magnitude, gotas de orvalho de raiva e de dor.

Mas amanhã nossa obrigação é sermos felizes por quem não está aqui mais vivo para exercer desejo. Nossa missão é viver. Nossa afronta maior é desejar viver.

E nosso dever é revelar o óbvio, embora o cotidiano tente nos convencer do contrário: Somos adoráveis. Somos o máximo.

Somos uma jovem mulher negra, grávida, com o útero cheio de estrelas.