Racismo: Punir para educar
Em 2020, Ndeye Fatou Ndiaye ficou conhecida em todo Brasil por sofrer injúria racial de seus colegas de escola, brancos da classe alta carioca, e por sua reação implacável. Não se calou e, contra os apelos do sistema, foi à justiça. Um ano depois, o dia da audiência com o juiz chegou. Quadro-negro convidou Fatou para escrever após o evento.
Não punir o racismo é naturalizá-lo – por Ndeye Fatou Ndiaye
Em todo Brasil, as denúncias de racismo têm aumentado exponencialmente nos últimos anos. A primeira leitura disso é a proliferação dos casos de racismo, sustentado por uma ausência total de políticas antirracistas e de diversidade do governo central e muitos governos estaduais e municipais. E naturalmente, conforme ensinou Kwamé Nkrummah, as pessoas quando estão acuadas, costumam conclamar por justiça. Por outro lado, com mais acesso ao ensino superior, a população negra ganhou mais impulso para reivindicar ainda mais seus direitos. O aquilombamento e iniciativas como as celebrações do Dia da Consciência Negra, Dia da África e Dia da Mulher Latino-Americana contribuíram bastante para um salto de consciência da população negra, que vinha sendo oprimida desde que a Europa pisou em solo africano. A tecnologia é uma aliada importante na documentação e na denúncia dos casos de racismo. Todo dia, vídeos ou áudios chocantes circulam nas redes escancarando casos irrefutáveis de racismo.
Sabemos que racismo é crime inafiançável e imprescritível no Brasil, sujeito a reclusão de até 5 anos, com agravante de 1/3 caso o racismo seja praticado contra menores de 18 anos (Artigo 5, Inciso XLII da Constituição Federal). De acordo com o advogado Fabiano Rosa, “O grande problema da lei brasileira é que ela não é objetiva, depende da interpretação do delegado. Além disso, a maior parte dos delegados são brancos, os promotores e juízes são brancos. Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) dizem que apenas 18% dos Magistrados do Brasil são negros ou pardos.” Não é difícil compreender o porquê do Brasil ainda não conseguir obter os mecanismos que buscam para punir seus racistas de forma rápida e eficaz. A maioria das denúncias acabam sendo minimizadas para casos de calúnia, ou no máximo injúria racial, que têm penas mais brandas.
Imagine só, você sofre ataques racistas dos seus colegas de forma perversa e cruel. E no dia da audiência, você é obrigada a ficar na sala de espera, diante dos seus agressores, seus genitores, advogados e testemunhas que fazem tudo para te mostrar que não estão nem aí com tudo que aconteceu, através de risadas e assuntos banais. É neste momento que você descobre que você tem mais força do que achava que tinha. Não se deixa abalar por isso. Afinal, hienas riem de tudo, mas são apenas hienas.
Na sala de audiência preto é você, seu pai e no máximo sua advogada. Todos os outros componentes que participam da audiência são brancos. O sentimento de estar falando com pessoas que jamais vão entender sua dor, suas angústias e seu conclamo por justiça te invade. As pessoas ali presentes, por mais que tenham toda a vontade e preparo, jamais conseguirão vestir sua pele para sentir sua dor. E sem contar com a outra parte que cria todos os cenários para te desacreditar, para debochar de você. Se entrar na pilha deles ou ser incisivo, você se torna o negro violento, emocionalmente fraco e vitimista. Mas, como você teve contato com o Homem Cordial de Sérgio Buarque de Holanda, você tira facilmente de letra.
Você sai da sala de audiência com a certeza a e consciência de que do ponto de vista criminal, absolutamente nada vai acontecer. A pena máxima que seus agressores vão receber como punição é a naturalização do racismo. As pessoas acham que combater o racismo é educar os racistas em vez de puni-los. Racistas têm acesso a todos os tipos de informação. Optaram por serem racistas. Mesmo com todos os sentimentos de impunidade que nos habita, devemos continuar, sim, denunciando e repudiando o racismo com todas nossas energias. O racismo continua nos aniquilando moralmente, intelectualmente e fisicamente. O fato de afrontar o sistema racial por si só é um ato de resistência, um ato de justiça.