Escrevendo na fronteira do Afeganistão
Em 2014, trabalhei uma temporada no Irã, escrevendo crônicas para um grande portal de notícias brasileiro. Em um determinado momento de março daquele ano, arrumei a mochila, e parti para o Afeganistão, que faz fronteira com o nordeste do Irã. Estava na hora de cobrir o país que vivia naquele momento livre do domínio do Taleban.
O Taleban é uma milícia fundamentalista de direita que nasceu incentivado pela política de Ronald Reagan para combater os comunistas soviéticos que invadiram o Afeganistão em 1979. Durante dez anos, com dinheiro da Arábia Saudita, e armas e treinamento estadunidense, os rebeldes que iriam formar o Taleban guerrearam e venceram a União Soviética, que gastou tanto dinheiro na guerra que abriu caminho para a queda do regime comunista.
Política internacional é o assunto preferido dos mais velhos, no assentamento de Masumabad, em Zirkuh, onde me estabeleci para escrever sobre o que pensam os refugiados afegãos.
E por um mês lá fiquei. Escrevendo na fronteira do Afeganistão.
E o que pensam as afegãs? Não interessa a mim, segundo os homens de lá. Os contrários ao Taleban. Me desaconselharam a conversar com elas. Mas, organizadas, vieram elas sim falar a mim, em uma longa conversa sem fotos numa das habitações do assentamento. A mensagem, direta e resumida: fora da capital, Cabul, a situação da mulher afegã é praticamente a mesma, com ou sem Taleban.
Em 2014 ouvi delas: “Hoje, todos os olhos que, em 2004, por causa da ocupação estadunidense, e 2012, por causa do atentado que vitimou Malala Yousafzai, se viraram para as mulheres afegãs, já se fecharam, certos de agora estamos bem, livres. Mas não estamos. Longe disso.”, disse a mais velha do grupo.
2021. Todos os olhos do mundo se voltam novamente para as mulheres afegãs. Os mesmos olhos que se abrem para a condição da mulher nigeriana quando o grupo Boko Haram, também um grupo fundamentalista conservador , sequestra grupos de cem, duzentas meninas em uma escola. Olhos que, hoje, estão fechados para lá.
Olhos que se abriram quando Kathlen Romeu, grávida, foi baleada e morta no subúrbio do Rio de Janeiro. Ou quando Eliza Samudio foi morta, esquartejada e teve o corpo jogado a cães. Ou quando a modelo Mariana Ferrer recebe ataques nas redes sociais quando acusa homens ricos de estupro.
Em Masumabad, o único que teve a liberdade de deixar-se fotografar dentro de casa foi um homem. Um senhor. Seu Haffa. Ele também falou sobre a situação da mulher afegã. Reclamou que não conhecia ainda a neta, que havia nascido oito anos antes, e que morava do outro lado da fronteira, a apenas 4 km de distância do avô.
Pensei na neta.
E nos olhos do mundo. Há tanto olho pra tantas situações, em tantos lugares?
Penso agora, em 2021, na imagem dos afegãos pendurados nos aviões, todos homens, a imagem já famosa do avião lotado de refugiados, todos também homens, penso no motivo pelo qual as mulheres não tiveram a permissão dos refugiados homens nem para fugir do país, e concluo que sim.
Penso que todas as situações são na verdade uma só.
O fundamentalismo conservador, em qualquer lugar do mundo.
Se nossos olhos estiverem atentos aos arroubos masculinos, conservadores, fundamentalistas de direita, estaremos enfim olhando para tudo.
Até lá, sigo escrevendo, mesmo estando no Brasil, direto da fronteira com o Afeganistão.
Pois não há lugar no mundo que não viva na fronteira com o Afeganistão.