A vida delta

Quando, em Março de 2020, surgiu a pandemia de Covid-19 e foi exigida de nós toda nossa sabedoria, empatia, coragem e paciência, demos o que tínhamos. Não era muito. A espécie humana que criou e, em sua maioria, escolheu viver em uma sociedade verticalizada, não é exatamente conhecida por sua bravura, preocupação com o próximo, inteligência e serenidade.

Quando a natureza pediu um prazo maior, talvez um ano, respirou-se fundo, mas encarou-se o desafio. O pavor com a quantidade de mortos nos deu reserva extra de paciência.

Fomos, então, viver o desafio de viver uma vida diferente, cheia de sacrifícios. Uma vida, digamos, beta.

Em jullho e agosto, o hemisfério norte havia passado seu primeiro verão dentro de casa, e não foi diferente com o sul. Carnavais, fossem da carne, fossem do mercado, foram trancafiados. Prometemos aguentar. Porque nada era mais importante do que salvar vidas. E porque de 2021 não passava.

Entramos o ano comemorando as vacinas e dando adeus aos meses ruins. Nos vacinamos e choramos, como se acabassemos sobrevivido a um genocídio no qual morreraram centenas de milhares de pessoas. Pensamos ter escapado.

Esquecemos que estava responsável por nos tirar dessa era o tal ser humano. Ele, e sua indestrutível capacidade de piorar o que deveria salvar.

Talvez se fosse por ela, a natureza, os vírus tivessem parado por aí. Mas veio o homem, e promoveu negacionismo, o fanatismo conservador, crises migratórias, genocídios, desmatamentos, e normalizou ainda mais o racismo e a violência de gênero. Dobrou a aposta para cima do planeta.

Então veio a variante Delta. E anunciou: nada de recreio. Vão todos ficar de recuperação durante ainda mais tempo.

Imediatamente, tudo acabou.

Com o fim da paciência, quem ainda estava otimista resignou-se. Ou entregou-se ao negacionismo, agora amplo e irrestrito à direita e à esquerda, e foi viver a sua vida.

Com o fim da sabedoria, veio o fim do medo.

Com o fim da empatia, configurou-se o que vivemos hoje: O pior momento da pandemia. Aquele em que já parecemos não ligar para ela. Nem para ninguém. Sequer para nós mesmos. Que vença o mais forte. Ou, no caso, o mais privilegiado.

Verticalidade. Hierarquia. A Covid-19 circula e transmuta-se em uma sociedade que se estrutura na ideia de que um é superior ao outro. Cor da pele, classe social e gênero como marcadores fundamentais deste sistema imunológico que protege apenas um tipo de gente.

Que não são, obviamente, índios e negros que, de cultura plena de sabedoria, empatia, coragem e paciência, não escolheram viver neste sistema. Foram trazidos à força para sustentá-lo.

Vivemos, hoje, uma outra vida. Não há mais esperança de volta para casa. Ela já não está mais lá. E, a cada dia que passa, aumenta a sensação de que tudo ainda vai piorar muito.

Vivemos, hoje, uma vida delta.

Índios e negros, que já a vivem há séculos e com ela foram obrigados a saber a lidar, não deveriam nos dar boas vindas.

Deviam é se vacinar contra nós, essa pandemia.