A lição Michaela Coel no Emmy 2021

Em tradução livre, feita por este que vos escreve, a roteirista, diretora, produtora e atriz Michaela Coel, 33 anos, agradeceu assim ao prêmio de roteiro para melhor minissérie ou filme para TV:

“Acabei de escrever uma coisinha para colegas roteiristas. Escreva a história que te assusta, que faz você se sentir inseguro, que é desconfortável. Eu te desafio. Vivemos um mundo que nos induz a navegar pela vida de outras pessoas para nos ajudar melhor determinar como nos sentimos sobre nós mesmos, e, por sua vez, sentir a necessidade de estarmos constantemente visíveis, pois visibilidade hoje em dia parece de alguma forma equivaler a sucesso. Não tenha medo de desaparecer, disso, de nós, por um tempo, e veja o que vem para você no silêncio.”

A fala parece endereçada somente a roteiristas. Mas é uma lição definitiva para todos nós.

Há um ditado ashanti, popular em Gana, país onde nasceram os pais da artista, que diz que saber viver é saber ler o mundo externo e escrever o mundo interno.

Michaela nasceu na Inglaterra, país que colonizou e extraiu todo o ouro da riquíssima Costa do Ouro, região onde outras Michaelas Coel nascem e vivem e escrevem suas vidas longe dos olhos do mundo ocidental.

Ela é a primeira mulher negra a ganhar um Emmy de melhor roteiro.

A série I May Destroy You, da HBO, escrita, dirigida, produzida e atuada por ela, assombrou o mundo quando estreou em 2020 propondo uma sinceridade radical em sua dramaturgia estilizada. Estilo e sinceridade, normalmente características conflitantes, foram por ela colocadas em mais alto volume para complementarem-se.

O prêmio veio.

E ela nos deu mais essa fala, em seu discurso de aceitação. Quase nada do que Michaela Coel escreve não é feito para resolver nossa vida, ou nossa relação como o mundo de hoje.

Para usar um trecho de sua preciosa fala, tudo o que ela faz nos ajuda a melhor determinar como nos sentimos sobre nós mesmos.

Seu trabalho traz muito a experiência de um corpo imigrante no mundo. Não apenas o da mulher negra, do corpo extraviado colocado em uma sociedade que se contrai ao sinal de transformações. Mas de todos nós.

Viver é imigrar ao mundo todos os dias ao acordar. Disponibilizar nosso corpo a um mundo novo e hostil e doce, todos os dias.

Viver é essa doce violência. Aplacável apenas pela administração do que em nós não é corpo.

Pouco recorremos a nós mesmos. Temos mais medo de passearmos pelo mundo interno de nós do que no mundo lá fora.

Michaela Coel explica que é preciso não ter medo.

Esta coluna, aqui, tem repetidamente falado sobre medos e seus efeitos de paralisia.

No fundo, escrevemos toda a semana aqui, como Michaela em seus trabalhos, sobre o ouro que o ocidente todos os dias extrai de nós.