Comentarista da Jovem Pan chama entidade da Umbanda de ‘demônio’

“É isso mesmo. Este senador Davi Alcolumbre está mais para Tranca Rua, aquele demônio pra quais são feitas oferendas para trancar a rua, trancar caminhos!”, disse na edição de terça-feira, 12 de outubro, o comentarista José Carlos Bernardi, do programa Os Pingos nos Is, veiculado pela rádio Jovem Pan.

Diz o artigo 208 do Código penal, sobre o crime de sentimento religioso:

Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso.

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Aqui mesmo, na Folha, o debate sobre os limites da liberdade de expressão e crime foram pauta acalorada na semana passada.

E venceu a afirmação óbvia. Liberdade de imprensa não é liberdade para mentir. Liberdade de opinião não é liberdade para mentir.

No caso do comentário a respeito da entidade Exu Tranca Rua, há o agravante profissional. Trata-se de uma empresa de comunicação e de um programa que tem como obrigação divulgar e promover a verdade.

Exu Tranca Rua não é um demônio. Pelo contrário. É, para os seguidores da religião umbandista, de matriz africana, uma divindade que abre e limpa caminhos. Mas criou-se, séculos atrás, essa mentira.

Enfim, o colonialismo.

O comentarista da Jovem Pan é o que chamamos de “evangélico avulso”. De tímida formação acadêmica, de vocabulário errático e pouco conhecimento sobre a Bíblia cristã (citou na mesma fala sobre Exu, provérbios 15 , versículo 1 fora de contexto, como se só tivesse lido o livro que segue, nunca estudado). No UOL, temos a erudição do colunista Ronilso Pacheco, evangélico que nos ilumina quando acaba sendo chamado a falar sobre os seguidores de sua religião que pregam exatamente o oposto do que ela profere.

Em 1995, o bispo Sérgio von Helder desferiu chutes e socos na imagem de Nossa Senhora Aparecida. “O maior erro da história da Igreja Universal do Reino de Deus”, afirmou seu líder, Bispo Edir Macedo, em sua biografia autorizada. A ofensa a católicos foi tão grande que Macedo teve que vir a público pedir desculpas e von Hélder deixar o país.

Chamar a entidade Tranca Rua de demônio é uma ofensa similar a seguidores de religiões de matriz africana.

O jornalismo populista do programa Os Pingos nos Is, com um elenco exótico de gente que parece que está ali para dizer o quer ouvir seu espectador, que durante as lives no Youtube transforma o setor de comentários uma espécie de umbral de almas atormentadas e raivosas que mais parecem uma turba de terraplanistas urrando por Barrabás. O amor e a verdade passam longe dali.

O Deus cristão, e/ou o Deus evangélico, deve acompanhar a tudo com horror. Mas certamente sem surpresa.

Ofensas religiosas acontecem de todos os lados, em todos os lados do mundo. Minto. Não há notícia de nenhuma religião de matriz africana, ou indígena que pratique ofensa religiosa.

Enfim, o colonialismo.

Já uma ofensa contra estas religiões significa mais porque espaços sagrados para elas vêm sendo sistemática e violentamente destruídas à força em nosso país. Quando um evangélico do tipo de José Carlos Bernardi chuta uma santa, é crime, mas igrejas não serão destruídas nem católicos mortos por isso. Já terreiros, mães, pais e filhos de santo são o maior alvo de assassinatos por motivos religiosos no Brasil, segundo o CCIR (comissão de combate a Intolerância Religiosa do Estado do Rio de Janeiro).

O que fazemos? Exigimos melhor formação de nossos comunicadores? Que estudem mais?
Exigir o básico, que é não divulgar mentiras, já não mais adianta.

A ignorância dos que têm tido o poder de falar com as massas é global, e parte de um pressuposto de que para falar com as massas é obrigatório ser ignorante.

O mundo foi pego de surpresa (não esta coluna), quando o fenomenal Abdulrazak Gurnah, escritor negro da Tanzânia, ganhou o Nobel de Literatura. Nunca havia sido publicado no Brasil. Dentro das editoras, pressupõe-se haver os profissionais preparados e sempre antenados com a literatura produzida fora do eixo estadunidense-europeu.

Enfim, o colonialismo.

Uma frase de um texto da literatura anticolonial do próprio Abdulrazak, talvez explique melhor.

Escreveu ele, em “By the Sea”, livro publicado pela editora Bloomsbury Publishing, em 2001.

“Às vezes eu penso ser meu destino viver nos destroços e tumultos das casas desmoronando.”

Enfim, o colonialismo.