Blues, samba e sofrência
Nos EUA dos anos 1920, uma mulher independente, de personalidade forte, e hábitos considerados masculinos como beber em bar, era uma ofensa para a sociedade.
Se esta mulher fosse, além disso tudo, negra e bissexual, a chance dela sobreviver eram precárias.
Se além de mais isso, fosse cantora de blues e falasse sobre relacionamentos tóxicos com homens e emancipação da mulher, então pronto.
O que chamamos hoje de sofrência, já teve muitos nomes na história. O mais famoso deles, blues.
Bessie Smith e Ma Rainey, as duas pioneiras do blues, foram namoradas e cantaram suas vidas, suas potências, e se eternizaram.
Bessie foi interpretada em telefilme da HBO pela cantora Queen Latifah. Ma Rainey foi incorporada por Viola Davis em ‘A voz suprema do blues’, que concorreu ao Oscar esse ano.
Bessie já foi esfaqueada no palco pela Ku Klux Klan. Mulher forte, com a faca cravada nas costas, expulsou na base da pancada os supremacistas brancos do recinto e só depois foi hospitalizada.
Quando foi presa por dar uma festa considerada ‘obscena’, sua vivência e escuta com presidiárias, a fizeram compor o clássico ‘Sing sing prision blues’, que conta a história que mais ouviu na cadeia: a de uma mulher que, cansada de apanhar do marido, resolve matá-lo.
Suas vidas foram documentadas na primorosa mas pouco conhecida obra ´Blues Legacy and Black Feminism´ (Editora Vintage Books / Random House, 1989), escrito por Angela Davis mas não publicado no Brasil.
E no Brasil, a sofrência teve, primeiramente, o nome de samba. Se Dona Ivone Lara popularizou-se no país cantando as dores de seu relacionamento com o marido em versos como “Não me comove o pranto de quem é ruim / E assim quem sabe essa mágoa passando você venha se redimir dos erros que tanto insistiu por prazer / Pra vingar-se de mim / Diz que é carente de amor / Então você tem que mudar / Se precisar, pode me procurar.” Clementina de Jesus, de talento tardiamente descoberto, após os 60 anos, cantava letras que falavam de feminismo, sofrência e até economia, ambientalismo e intelectuais homens brancos brasileiros e seus disparates machistas.
“Vou vadiar, eu vou. Energia nuclear. O homem subiu à lua. É o que se ouve falar, mas a fome continua. / É o progresso, tia Clementina, trouxe tanta confusão. Um litro de gasolina por cem gramas de feijão. Cadê o cantar dos passarinhos. Ar puro não encontro mais não. É o preço que o progresso. Paga com a poluição. / O homem é civilizado / A sociedade é que faz sua imagem / Mas tem muito diplomado /Que é pior do que selvagem. / Por isso vou vadiar, vou vadiar, vou vadiar.”, cantava Clementina no século passado.
De tão moderna, parece até hoje à frente de seu tempo. O que as mulheres artistas fizeram, e continuam fazendo, por seu gênero é uma alegria que precisa ser frequentemente relembrada.
A vida das mulheres do blues, do samba, da sofrência, não precisam nos entristecer. Elas precisam é ser celebradas.
Seu legado precisa é vadiar.