Meninas negras podem ser sereias

Vencedora do Troféu Mulher Imprensa 2021 na categoria jornalistas da editoria de Diversidade, Nath Braga escreveu para o Quadro-negro, uma delicada crônica que é ela mesma a consciência negra. Ciência, consciência cabelo e água.

 

Meninas negras podem ser sereias – Por Nath Braga

É incrível a quantidade de brincadeiras que poderiam acontecer ali, em uma piscina de plástico. Tinha jogo de luta, campeonato de quem conseguia passar mais tempo submersa, tentativas de acrobacias, cabra-cega (que você pode conhecer como ‘cobra cega’) e até um esforço coletivo para criar a própria piscina de ondas, o que muitas vezes derrubava  um dos ferros da piscina e encerrava a brincadeira.

Era comum que, depois de uma tarde inteira nadando, minhas primas e eu decidíssemos brincar de salão de beleza. Só isso já era um grande avanço pra quem não participava desses momentos em sala de aula. Com imaginação e água, nós penteávamos nossos cabelos de um jeito que era tão relaxante quanto assistir ASMR e, ao mesmo tempo, rendia alguns resultados propositalmente zoados. A cliente da vez só podia se olhar no espelho no final.

A água representava liberdade pra mim. Era a trégua no conflito entre as duas texturas: a maior parte, quimicamente tratada, ganhava movimento. Já a parte mais próxima ao couro cabeludo, completamente crespa, ficava úmida e maleável. Meu cabelo é do tipo 4C. Sim, há alguns anos existe uma classificação de tipos de cabelo que vão do 1A (mais liso) ao 4C (mais crespo) que ajuda as pessoas a encontrarem produtos e rotinas de cuidados de forma personalizada. Porém, na minha infância, tudo que eu sabia é que aqueles milímetros de cabelo natural crescendo eram motivo de constrangimento, e esse fenômeno era chamado de “raiz alta”. No mergulho, eu conseguia esquecer por alguns minutos a pressão de me manter arrumada, ainda que não soubesse quando poderia aplicar relaxante no couro cabeludo outra vez. Inclusive, que nome irônico! Mas, eu ainda nem contei qual era a parte mais legal no meu imaginário infantil: mergulhar!

Embaixo d’água, meu cabelo flutuava como se fosse liso. Eu adorava fazer isso quando o sol estava forte porque os fios ficavam mais acobreados do que nunca, e pra mim aquilo era um loiro incrível (visualmente, não estava errada!). Desejei muito que os procedimentos químicos, por mais dolorosos que fossem, pelo menos  tornassem o meu cabelo mais claro. Era quase um troféu de consolação, mas não por finalmente me aproximar da estética ‘branca’, e sim porque a incompatibilidade química me impedia de pintar o cabelo. Apesar disso, lá estava a natureza me presenteando com um efeito colateral. Anos depois, soube que aquilo na verdade era uma evidência de que, a cada contato com a soda cáustica, meus fios estavam perdendo consistência e, literalmente, se transformando em fantasmas pálidos.

Sim, eu coleciono memórias felizes com o meu cabelo. Existe um mundo onde meninas negras viram sereias em suas piscinas, brincando por aí de pentear o cabelo com os dedos enrugados. Nós, pessoas adultas, sabemos respeitar a mitologia muito bem. Quer ver? Tenho certeza que você fecharia esse texto agora se eu começasse a defender que sereias fossem criadas em cativeiro. Todo mundo sabe que a beleza das sereias tem relação direta com a liberdade, inclusive, de adornar os próprios cabelos. Sereias-meninas-negras também não precisam ter uma vida limitada às piscinas. Elas merecem mais.

Lá no início dos anos 2000, era o saldo bancário que determinava quando era o momento de “fazer o cabelo”, já que os relaxantes capilares custavam entre R$20, e R$60, a depender se eram comprados na farmácia ou no salão. Poderia listar aqui umas 15 demandas mais urgentes nas finanças de uma família preta em comparação a modelar o cabelo de uma criança. Ainda assim, insistíamos porque relaxar ou alisar cabelos cacheados e crespos era visto como o único caminho possível. Felizmente, pouco depois de 2013, foi impossível não prestarmos atenção nas inspirações que pessoas pretas influenciadoras e ativistas exibiam todo dia na internet. Desde então, as prateleiras estão cada vez mais preenchidas com produtos que hidratam, modelam e até mesmo colorem os nossos crespos. Além disso, podemos nos divertir com várias fibras sintéticas para trançar o cabelo, com direito a tons coloridos, mechas e até uma versão arco-íris.

Diante de todas essas possibilidades, qual é o sentido de continuarmos aplicando produtos agressivos na cabeça das crianças pretas? As dores vão além de sentir a pele pegando fogo no momento da aplicação, da confusão mental que é só se sentir com um cabelo longo, brilhante e bonito embaixo d’água ou do incômodo de, no caso das pessoas com cabelo 4c, circular por aí com uma ‘denúncia’ de que, no fim das contas, o cabelo não ficou nem liso, nem com cachos espaçados.

Segundo levantamento feito pelo Dr. Fleury Johnson, que é médico formado pela UFRJ e tem uma carreira dedicada à saúde da população negra, o uso de relaxantes capilares pode trazer consequências como miomas uterinos, câncer de mama e até mesmo puberdade precoce nas pessoas negras do sexo feminino. Temos então, impactos biológicos que se combinam a um problema social já comprovado: a população enxerga meninas negras como menos inocentes tanto no viés da punição quanto no da sexualidade. Este último estudo, o da inocência, foi feito pela Georgetown Center on Poverty and Inequality (GCPI).

Apesar de todos esses estudos e a própria recomendação da Anvisa para que menores de 12 anos não passem por esses procedimentos, a oferta de relaxamento capilar para crianças é gigantesca! As redes sociais estão repletas de postagens de salões de beleza que exibem orgulhosamente o antes e depois, oferecem promoções para o público infantil e não economizam nas mentiras — há quem diga que a aplicação é indolor, “sem química” (um paradoxo) e não oferece prejuízos à saúde.

Oferecer às meninas pretas uma realidade em que seus cabelos são livres dentro ou fora d’água não é algo de outro mundo. Aqui está a nossa obrigação de zelar por uma infância que leve a futuros saudáveis.