Quadro-negro https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira Fri, 26 Nov 2021 18:56:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Professor, preto, vacinado e deprimido https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/professor-preto-vacinado-e-deprimido/ https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2021/05/26/professor-preto-vacinado-e-deprimido/#respond Wed, 26 May 2021 08:06:46 +0000 https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/dodo-vacina-valendo-300x215.jpeg https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/?p=827 No Brasil, ou em todos os países que escravizaram africanos, a experiência de ser preto é pessoal e intransferível.

Porém, a algo comum a todos. O que nossa sociedade nos diz o tempo inteiro, como coletivo, é que somos uma espécie de “doença”, da qual o Brasil padece.

Crime tão grotesco quanto escravizar nossos ancestrais é, até hoje, tentar nos convencer de que o Brasil estaria melhor sem nós, esse vírus.

A primeira pessoa a morrer de Covid-19 no Brasil foi uma negra. Cleonice Gonçalves contraiu a doença de sua patroa, branca e rica, que voltava de uma viagem à Itália.

O Brasil pode ter fracassado em combater o vírus da Covid-19. Mas venceu em combater os descendentes dos escravizados que foram trazidos da África.

O IBGE informa que morrem 40% mais negros que brancos por coronavírus no Brasil. Que a chance de um negro morrer por coronavírus é 38% maior do que a de um branco.

“É um vírus que não escolhe cor nem raça nem classe social”, tenta-se estabelecer esta falácia.

A experiência de ser preto é impessoal e intransferível. Por isso, peço licença para agora alternar a narração deste texto para a primeira pessoa.

Nesta terça (25) chegou o dia de vacinar-me pelo SUS. Contemplou-se ontem professores da rede pública e privada do município do Rio de Janeiro. No posto de saúde, aos pés de uma favela, apenas brancos atendiam brancos. Não aparento a idade que tenho. “Você veio aqui…”, todos perguntavam, perplexos. Quando eu me identifiquei como professor, a perplexidade aumentou. Segundo o IBGE, apenas 16% dos professores no país são negros.

O Brasil pode ter fracassado em combater o vírus da Covid-19. Mas venceu em combater os descendentes dos escravizados que foram trazidos da África.

Na minha frente, as pessoas na fila, todas brancas, maioria de idosos, saía da sala com um semblante leve, renovado. Afinal, chegava ali, teoricamente, o fim de mais de um ano de medo de contrair a Covid-19 e morrer. As vacinas são, nesse caso, tanto contra o coronavírus quanto são vacinas contra o medo.

Para negros, o Brasil ainda não desenvolveu o vírus contra o medo da morte. Podemos morrer, e morremos, de tudo. Da ausência de direitos básicos como educação. Da abundância de violências contra nossos corpos.

Por isso, quando a enfermeira me espetou a agulha, só pude pensar na família de Joseph Laroche.

Joseph Laroche era o único negro a bordo do Titanic. Casado com uma branca que viajava com suas duas filhas nascidas do casamento anterior, com um branco. Sua esposa estava grávida de um filho seu. Na tenebrosa noite de 15 de abril de 1912, esposa e filhas foram embarcadas em botes salva-vidas. Sobreviveram. Joseph, não.

Até hoje, os descendentes de Laroche não comemoram o fato de seus antepassados terem sobrevivido ao naufrágio do Titanic . Pelo contrário. Choram a morte das 1.500 pessoas, os brancos e o preto, que morreram por negligência dos comandantes do navio.

Ao ser vacinado, não houve o que comemorar: eu estava sendo resgatado deste grande Titanic em que o governo transformou nosso país, esse navio sem comandantes.

Só pude chorar a morte dos brasileiros, pretos e brancos, que não puderam receber a vacina a tempo.

Só pude chorar nosso naufrágio.

Fui ao posto de saúde com a camiseta da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a qual pertenço, onde a bandeira desse Brasil que mata por negligência verde-e-amarela-ordem-e-progresso foi substituída por uma cor de rosa onde se lê, “índios, pretos e pobres”.

À noite, chega a notícia de que um dos baluartes da escola, Nelson Sargento, aos 96 anos, foi internado em estado grave com a doença. Chorei mais.

No fim dos anos 90, apareceu em meu apartamento e se apresentou como pintor de parede. Era um bico. Chocado, pedi para não pintar nada. Paguei o combinado, dei meu violão na sua mão, e pintei eu mesmo o apartamento, enquanto ele tocava o instrumento. Foi uma das grandes honras de minha vida, trabalhar ao som de um dos maiores mestres de nossa cultura.

Honras de minha vida, mestres de nossa cultura. Nossa, minha. A experiência de ser negro no Brasil é pessoal e intransferível.

Mas a consequência é coletiva.

 

 

 

 

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Enquanto o país esfria, a cultura negra ferve https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/12/14/enquanto-o-pais-esfria-a-cultura-negra-ferve/ https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/12/14/enquanto-o-pais-esfria-a-cultura-negra-ferve/#respond Sat, 14 Dec 2019 16:42:52 +0000 https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/jo2-300x215.jpg https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/?p=246 Estados Unidos da América. No início dos anos 70, o movimento negro americano exibia sinais de exaustão. Os últimos 15 anos haviam sido ainda mais difíceis que os anteriores. Conspirações do FBI, atentados, e assassinatos tornavam a militância um fardo quase insuportável. 

Reuniões dos grupos de ativistas corriam tensas e belicistas. Nasceu, então, a ideia de que, para o bem da saúde mental e espiritual dos ativistas, era necessário também um outro tipo de reunião. Era necessário também encontrar-se para celebrar e sorrir. Trocar afetos. Olho no olho.

Nascem, então, as Block Parties, festas de rua diurnas onde os militantes experimentavam finalmente também um outro modo de exercer militância. O sorriso, a pessoa por trás do ativista, o conhecer-se para além do ofício. Em 8 de agosto de 1973, em uma Block Partie em Nova York, nasce o Hip Hop. O planeta inteiro jamais será o mesmo.

Agora estamos no Brasil. Onde outra história, ainda mais rica, transcorreu-se. Coisa para historiador negro brasileiro contar.

No dia 19 de março de 2018, no Rio de Janeiro, momento em que já se estabelecia crise econômica e cultural no país, acirrando-se as desigualdades logo estressando militâncias, o historiador negro brasileiro Jonathan Raimundo teve, com amigos, uma ideia. Que tal um piquenique só de pretos em um domingo à tarde? Postou a ideia no Facebook. Compareceram 30 pessoas. Sucesso. Tarde inesquecível. Resolveram repetir o evento. 70 pessoas. Enquanto a movimentação cultural no país esfria e é apequenada, o piquenique negro cresceu, invisível ao olhar da cidade branca. As 70 pessoas se transformaram em mil, depois em duas mil. Hoje acontece a última edição do ano evento, o Festival Wakanda in Madureira. Vai gente de todo o canto do Rio de Janeiro. Vai caravana de São Paulo . Vai gente. Gera-se empregos. O dinheiro circula entre negros. Sucesso visível. 

Convidado pelo Quadro-negro, Jonathan, produtor, professor e colunista do “Movimento Black Money”, escreve sobre como se faz. Enquanto faz como se escreve.

O sucesso visível do fazer por si invisível – por Jonathan Raimundo

Em um texto escrito por mim em 2016 dizia que “ser Negro é estar sempre entre tempos, é ter no caminhar inúmeros pés que gastaram a sola na construção do chão que hoje caminhamos”.

Penso que para analisar as construções Negras hoje é preciso ter o tempo como farol. Para nós a ancestralidade é o centro do nosso modo de ser no mundo. Vemos nascer pela cidade, em tempos de crise econômica, ações de sucesso iniciadas por grupos historicamente oprimidos, sem o apoio de políticas públicas. É o caso do Festival Wakanda in Madureira, que nasce da ação coletiva e autônoma do povo Negro, que sem ter em vários níveis, resolve fazer por si mesmo.

Por si. Sem ter respeito, resolve se respeitar, sem ter incentivo econômico, faz o dinheiro girar entre si, sem ter apoio cultural, põe seus próprios talentos a disposição da comunidade.

Como não voltar à História do Negro no Brasil para entender o que fazemos hoje?

Como esquecer das casas coletivas (Zungus) que abrigavam negros livres, fugidos e escravos se tornando pontos de resistência cultural.

Como esquecer as juntas de alforria, Instituições autônomas feitas entre negros de ganho e libertos, que compravam cartas de alforria.

Como esquecer o terreno da Tia Ciata, a Tia Bebiana organizando pequenas corporações marcadas pela solidariedade, da construção da primeira Escola de Samba, das Irmandades Negras?

Há numa mesma cidade uma paralisia e uma efervescência cultural invisibilizada pelo racismo, cujo vigor compõe a história de um povo que resiste e transborda.

A última edição do evento Feira Preta, ocorrida em São Paulo entre 7 e 8 de novembro de 2019, movimentou mais de 35 mil pessoas, gerando mais de 300 empregos, mais de um milhão e meio de circulação monetária.

Há o grupo Awurê, o Bengala na Mesa na resistência do samba de terreiro, a Rede Carioca de Roda de Samba etc.

Os Negros continuam promovendo as tecnologias sociais para efetivar o seu ser no mundo e, mesmo alijados das políticas públicas, continuam criando e promovendo o avanço civilizatório desta sociedade.

Os Negros continuam.

Jonathan Raymundo é bacharel e licenciado em História pela UERJ. 

FESTIVAL WAKANDA IN MADUREIRA

Quando Sáb., até às 22h, no dia 14/12

Onde R. Soares Caldeira, 115, Madureira, Rio de Janeiro

Preço R$ 12 a R$ 40

Classificação Livre

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Sem negros no palanque, a esquerda não vencerá https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/12/13/sem-negros-em-suas-liderancas-a-esquerda-nao-voltara-a-vencer/ https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/12/13/sem-negros-em-suas-liderancas-a-esquerda-nao-voltara-a-vencer/#respond Fri, 13 Dec 2019 11:27:11 +0000 https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/Sabrina-300x215.jpeg https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/?p=220 Muitos negros uniformizados jogando futebol. Seus chefes, empresários brancos, nas arquibancadas, aplaudem. Muitos negros em cima do palco. Seus chefes, empresários brancos, nas arquibancadas, aplaudem. Muitos negros eleitores. Aplaudem e elegem políticos brancos. Seja no palco ou na platéia, aos negros, e com frequência até pelos próprios negros, é vedada posição de poder.

Já escrevi aqui, que todos os problemas e questões do negro no Brasil se resolverão no dia em que negros, maioria de nosso eleitorado, votarem em candidatos negros. Especialmente em candidatas negras.

Marielle Franco, cria da Maré, foi eleita pela classe média branca do Rio de Janeiro. Os negros da Maré, a maioria evangélicos e cristãos do tipo antipáticos a figuras como a dela (lésbica, feminista, cristã defensora de religiões afro-descendentes) elegem, claro, brancos. Como disse uma vez a própria Marielle, pesarosa:

“Na Maré, até vizinhas olhavam para a minha proposta de ideia de família, não tradicional, não heteronormativa, e diziam que não votariam em mim por causa disso. Diferente do povo da Zona Sul, que de certa forma compreende melhor o lugar das liberdades das famílias. A esquerda ainda está infelizmente pautada em uma Zona Sul sociológica.”

Recentemente premiada no Festival de Brasília, a cineasta negra Sabrina Fidalgo, colaboradora do Quadro-negro, examina outro de tantos nós que se intrincam neste contexto contraditório e perverso. A falta de negros em palanques brancos, cotidiano especialmente mais grave quando falamos de partidos de esquerda que, com a saída de Lula da prisão, procuram reagrupar-se.

Haverá futuro para esquerda se não empossar negros em cargos de liderança de seus partidos?

Marielle Franco viveu e morreu sem ter sido eleita líder de seu partido.

O ex-presidente Lula discursa em São Bernardo do Campo – Eduardo Knapp/Folhapress

Sem negros no palanque, a esquerda não vencerá

Por Sabrina Fidalgo

Numa tarde cinzenta do ultimo dia 8 de novembro, durante uma reunião de trabalho, meu celular não parava de vibrar. O conteúdo das mensagens era um só; Lula havia sido solto.

Corri para casa o mais rápido que pude e ainda cheguei a tempo de ligar a TV para assistir ao vivo o ex-presidente deixar o presidio de Curitiba, sorridente, bem disposto, barba feita, caminhando acompanhado por companheiros do Partido dos Trabalhadores.

Logo vemos Lula discursar no palanque com aquela veemência e carisma que lhe são peculiar. “Sua retórica está ainda mais poderosa”, penso comigo enquanto assisto o grande acontecimento. Tirei uma foto da tela da minha própria TV para postar nas minhas redes sociais no auge da euforia da incrível e surpreendente novidade daquela sexta-feira cinzenta que nada prometia e, ao olhar a foto recém postada, percebo algo que já me chamara atenção não é de hoje; na imagem temos Lula ao centro, microfone em punho e ao seu fundo, políticos e
nomes conhecidos do PT, poucas mulheres e muitos homens.

Todos brancos.

Como em todos os palanques políticos do Brasil, da América Latina, e de grande parte do Ocidente.

Mas o PT é um partido de esquerda, logo o conceito de esquerda diz-se inclusivo e promete corrigir desigualdades, certo? A resposta é não.

Porque “a teoria, na prática, é outra”.

Alguns dias mais tarde, mais precisamente no dia 14 de novembro último, Midiã Noelle, do “Correio” (antigo “Correio da Bahia”), postou em sua coluna uma carta do “Coletivo Afronte à Comunicação” endereçada ao ex-presidente Lula que, aquela altura, se encontrava militando em Salvador. O trecho da carta que melhor representa sua urgência e importância diz o seguinte :

“(…) A verdade Lula é que não existe nada nesse país que não tenha a contribuição negra como parte do pacote. Seja balançando bandeiras, indo às ruas defender projetos políticos que não nos incluem ou incluem a contento como os governos atuais de nosso estado e município. A verdade é que por mais que você tenha se informado sobre o que aconteceu e acontece nesse país, algumas coisas lhe escapam por conta das velhas oligarquias brancas que, por motivos diversos, tinham mais acesso a você do que a nós, ainda que estivéssemos na mesma frente de batalha. Se hoje os partidos de esquerda têm alguma força, tem por nossa presença extrema, mas invisibilizada na hora da festa. Entendemos que não existe mais acordo para que a maioria da população seja invisibilizada e ignorada em nosso estado e município. (…)”

É sabido que há na velha esquerda problemas em relação a escuta e
aceitação de criticas do que eles chamam de “grupos identitários”. Para todo e qualquer movimento feito nessa direção, seja qual for o momento político, a resposta pronta mais notória é; “não é esse o momento”.

Por “não ser esse o momento” que desde a reeleição de Dilma para cá a velha esquerda enfrenta uma derrota atrás da outra culminando com o resultado das ultimas eleições. Por “não ser esse o momento certo” que houve uma enorme debandada das populações periféricas para os partidos da ultradireita. Por “não ser esse o momento certo” que as igrejas neopetencostais continuam num crescendo de seu rebanho, majoritariamente negro e ignorado por essa “velha esquerda.”

Quando a velha esquerda fala de “grupos identitários” a impressão que eu tenho é que ela esta falando lá do topo do Himalaia para o Brasil tamanha a distancia que se dá. A velha esquerda não consegue entender que não existe grupo mais identitário do que o dela mesmo ou seja, o grupo identitário masculino, branco e hegemônico, que, como diz Djamila Ribeiro, “só fala de si, governa para si e só pensa a partir de si ”.

Senão, vejamos; o quadro da velha esquerda inteira é tão branco quanto o quadro da ultradireita, que, mal comparando, mas já comparando, se apropria errônea porém eficazmente do poder da imagem ao usar figuras como a do deputado federal “Hélio Bolsonaro” (vulgo Hélio “Negão”) posando sempre ao lado ou detrás do atual presidente.

A velha esquerda branca costuma se referir a Hélio como “o negro de estimação do Bolsonaro” numa forma desprezível de racismo, dando a entender que o tal deputado, por ser negro, jamais poderia ser apoiador de um presidente da ultradireita.

Acontece que ser negro não é condição para nada além de ser o que se queira ser, inclusive de ultradireita.

Lidem com isso.

E comparando os quadros, vendo a imagem de Lula discursando logo após sua soltura, tudo leva a crer que a velha esquerda é quase tão branca quanto os mais temíveis grupos de supremacia branca do Hemisfério Norte. Além de quase ninguém na velha esquerda ser negro (com exceção de uma Benedita da Silva aqui e acolá), ninguém alí se relaciona com pessoas negras, mestiças, indígenas ou periféricas. As primeiras damas são sempre mulheres brancas, advindas das elites econômicas e/ou intelectuais e vice-versa. A imagem da velha esquerda
é a imagem da supremacia branca e do patriarcado oligárquico.

É a perpetuação do Brasil colonial .

É por isso que se faz tão necessária a carta do “Coletivo Afronte à Comunicação” endereçada ao ex-presidente Lula. Para que ele, agora ainda mais instruído de leitura política durante seus 14 meses de cativeiro, tenha o discernimento de entender que não existe esquerda sem protagonismo de cor, raça e gênero no Brasil de 56% de população que se autodeclara preta e parda. Afinal, não basta governar para essas populações e se vangloriar ad eternum por uma instauração tardia de políticas de cotas raciais somente. A esquerda tem que governar
junto com essas pessoas que agora precisam ter sua própria voz saindo de dentro nas cabeças dos partidos de esquerda. De outra maneira tanto a velha quanto a nova esquerda brasileira continuarão sendo um disfarce mal feito de uma ultradireita com toscas pinceladas de marxismo dadaísta.

E seguirão perdendo.

Sabrina Fidalgo é roteirista e cineasta.

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Rincon Sapiência: Para muitos, ainda é difícil reverenciar a genialidade periférica https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/convidado-especial-rincon-sapiencia/ https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/10/18/convidado-especial-rincon-sapiencia/#respond Fri, 18 Oct 2019 16:46:22 +0000 https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/rincon-1-300x215.jpg https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/?p=38 O Brasil contemporâneo tem sido um objeto escorregadio para a maioria de seus analistas, historiadores e cronistas. Tem mostrado maior capacidade de entender nosso momento quem pensa o país a partir de suas periferias, e do ponto de vista do negro.
 
O rapper brasileiro Rincon Sapiência é um jovem poeta e fino intelectual que nunca erra o alvo. Em suas letras, diagnósticos são precisos e sugestões extraordinariamente transparentes.
 
Em 2017, lançou Galanga Livre, seu álbum de estreia, consagrado pela Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA). Recentemente, o artista lançou o seu próprio selo musical independente, chamado MGoma, apostando em seu reconhecimento como um dos produtores musicais mais respeitados da cena.
 
Para o Quadro-negro, ele foi convidado para exercitar-se também no formato de prosa. É seu primeiro artigo publicado. Para ele, uma estreia. Para nós, uma honra.  Para o leitor, um recado: a depreciação do que vem da periferia é, no fim de tudo, uma questão de manutenção de privilégios por parte de quem os tem.

O futuro da música brasileira é o gueto

Por Rincón Sapiência

Quanto mais o tempo passa, mais registros são incorporados à música brasileira. No mesmo ritmo em que a sociedade se transforma, a música acompanha seus rumos. O Brasil, que outrora ganhou atenção mundial com a bossa nova, por exemplo, hoje já caminha para outros lugares. Continuamos exportando música e o mercado pop vem crescendo de forma considerável no país.

Nesse contexto, nosso território se tornou referência para artistas internacionais, o que pode ser justificado pela dimensão do país e pelo grande volume de acessos às plataformas digitais de streaming. Naturalmente, o que vem sendo feito por aqui está no radar daqueles que procuram novas tendências, e a criação de novas linguagens continua sendo uma marca da música brasileira. Quando se trata do contemporâneo, porém, os protagonistas são outros, e esse movimento é muito interessante.

A tecnologia acompanha a crítica dos puristas, os quais afirmam que a música atual é pouco duradoura. Realmente, essa não é uma acusação absurda, mas precisamos considerar que essa mesma tecnologia permitiu que mentes criativas e com formação musical não acadêmica assumissem o protagonismo, sugerindo novas faces da brasilidade.

Do brega tradicional surge o tecnobrega, no Pará. Em Recife, surge o brega funk. O funk, ritmo mais popular do país atualmente, por sua vez, tem aumentado a velocidade de suas batidas, saindo dos padrões que giravam em torno de 130 bpm (batidas por minuto), e acelerando consideravelmente para 150 bpm, dando origem a mais um subgênero do ritmo.

Na Bahia, o pagodão tem adotado sonoridades digitais em suas produções, nas quais harmonias menores aparecem com mais frequência. Cantores e cantoras com vocais menos melódicos trazem uma onda mais próxima a dos MCs. Assim, o pagode baiano vem ganhando uma nova cara.

O rap, por sua vez, ainda adapta conceitos gringos de forma literal. Em contrapartida, muitos artistas do rap começaram a identificar essa importação e compreender a necessidade de se implantar signos da nossa cultura em suas produções. Nesse cenário, o gênero musical tem dado asas a um imaginário que o tem levado a ocupar um lugar cada vez mais central na música brasileira, como aconteceu com o rock nos anos 80.

No que diz respeito a novas linguagens, todo esse movimento me leva a refletir sobre como a periferia tem abastecido o cenário da música por aqui. É notável que toda criação recente tende a ser desclassificada, contexto em que percebo certo tom de repúdio por parte dos mais conservadores. Isso porque já não se trata mais apenas de dissonâncias nos acordes, vocais mirabolantes, letras complexas baseadas em literatura ou histórias que surgiram de vivências em Copacabana.

São músicas que surgem nas quebradas, onde a percussão é tão determinante quanto as harmonias, que são acompanhadas de gírias locais, passos de dança e sensualidade. Signos que, por questões preconceituosas, não são associados à arte de qualidade.

Órfãos de movimentos como a bossa nova, a tropicália e outros clássicos da MPB, argumentam que nada mais tem sido feito de novo em terras brasileiras. Reconheço que o contemporâneo não aponta para surgimento de obras incríveis e eternas, como de Milton Nascimento e do Clube da Esquina. Por outro lado, situando a arte musical contemporânea, coisas grandiosas ainda vêm sendo feitas nos dias de hoje.

É nesse processo que consigo notar como historicamente sempre foi difícil para muitos reverenciar a genialidade periférica. Nessa dinâmica, sempre nos colocam como “a voz de alguma coisa” ou relacionam o nosso sucesso a algo “espontâneo”. Com isso, desconsideram que existe muita pesquisa por trás da criação de um ritmo ou de um estilo de dança, que, definitivamente, não se tratam de caricaturas.

Há alguns anos, artistas como Carmen Miranda e João Gilberto levaram a música brasileira para além das fronteiras nacionais, e hoje não é diferente. Atualmente, temos representantes como Kevin O Chris, MC Fioti, Ludmilla e Anitta, que dão continuidade a esse processo e potencializam o alcance da nossa música internacionalmente.

O grande detalhe é a origem das produções e do gênero musical que trabalham. Analisando esses caminhos tão promissores, cada vez mais tenho me convencido de que a frase “O futuro é o gueto, ninguém nega” define os rumos que a música brasileira contemporânea tem trilhado.

Rincon Sapiência, 34,  é MC, produtor e empresário

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Quadro-negro, essa lousa https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/10/17/quadro-negro-essa-lousa/ https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/2019/10/17/quadro-negro-essa-lousa/#respond Thu, 17 Oct 2019 18:47:26 +0000 https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/maododo1-300x215.jpg https://quadronegro.blogfolha.uol.com.br/?p=22 Há um ditado iorubá que começa dizendo que metade das respostas para tudo nesta vida está dentro de nós. Há algo sobre mim, que me apresento agora a você, leitor, muito prazer, que explica a existência do projeto Quadro-negro.

Sou filho do orixá Oxalufã. Mas, toda vez que escrevo seu nome, o corretor automático do editor de texto grifa a palavra de vermelho. Diz que não está correta. Que não existe. Que não é bem-vinda.

É isso. Segundo as normas de correção, automáticas e automatizadas, não posso sequer escrever o nome de meu pai.

A existência do Quadro-negro é, portanto, resistência estrutural. O Brasil é um país afrodescendente cuja narrativa é, definitivamente, contada por quem não quer ver-se como tal.

Quem concluiu isso (que para afrodescendentes brasileiros sempre foi escandalosa obviedade) foram dois amigos pessoais, brancos e estrangeiros. Em 1993, Kurt Cobain, da banda de rock Nirvana, me disse, entre um cigarro e outro nos bastidores do festival Hollywood Rock, estar chocado com a falta de negros nas plateias de seus shows no Brasil. “Pensei que aqui não fosse como nos EUA”, disse.

Caminhando pelas ladeiras do bairro de Södermalm, na Suécia, em 2014, após a exibição de meu primeiro longa-metragem no Festival BrasilCine de Estocolmo, meu amigo Alex Pflucker externou sua surpresa por ser eu o único diretor negro de um festival só de filmes brasileiros. “O Brasil não me parece distribuir bem suas oportunidades de visibilidade.”

No Quadro-negro, quem concluirá não serão brancos nem estrangeiros. Poetas, policiais, dentistas, juízes, gerentes financeiros, historiadores, engenheiros, desportistas afrodescendentes serão os donos da narrativa. Textos escritos por gente preta. Terreiro cheio de convidados. Neste ilê, nesta gira, cabe tudo o que sistematicamente é invisibilizado.

Estreamos com nossa maior escritora viva: Conceição Evaristo, em um artigo escrito especialmente para o Quadro-negro. Seguimos com estreias. Rincón Sapiência, o bardo/ogã desta nova geração brasileira de negros acesos, escreverá os primeiros artigos de sua carreira para este projeto. E muito-mais-gente. Construção. Reontologização. Espaço civilizatório de pertencimento ancestral. Isso será o Quadro-negro. Essa lousa.

Porque o restante do citado ditado em iorubá diz que a outra metade das repostas para tudo na vida está é no outro.

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